Caderno 3
MÚSICA
Fortaleza,Ceará 02 de Abril de 2006 - Domingo
HENRIQUE NUNES
Matéria Condensada  - AURA

Ednardo - Anos 80

Foto - Eduardo Almeida

Ednardo

Trinta e cinco anos de carreira, desde o Festival Nordestino de Música Brasileira, promovido pelos Diários e Rádios Associados - TV Tupi. 
E eis que veio da gravadora EMI o relançamento conjunto de três álbuns, praticamente inéditos, da década de 80: “Terra da Luz”, de 82; “Ednardo”, de 83, e “Libertree”, de 85.

Todos em formato econômico, sem letras ou detalhes gráficos no encarte, além da capa e da contracapa originais. Os relançamentos saídos pela EMI, desde 82, a editora de todas as músicas de Ednardo é a Aura Edições Musicais, que também é o selo próprio do cantor e compositor fortalezense.

Henrique Nunes

De passagem para um show na região do Cariri e para a divulgação dos CDs, Ednardo falou sobre o cenário em que os discos foram feitos. O músico atribui o pouco interesse pelos álbuns, na época, à concorrência brutal com o movimento fonográfico em torno do rock brasileiro, quando as gravadoras optaram por investir menos na MPB.

Em abril ou maio, um show deverá apresentar este repertório. Provavelmente, no Rio onde ele vive há 20 anos. O que poderá ser integrado mais enfaticamente a seu show.
Até o final do ano, comecinho do próximo, o cantor e compositor pretende liberar outros projetos: um com músicas inéditas de estúdio e outro com suas músicas para trilhas de cinema. Na seqüência, um álbum em parceria com o cantor e compositor Climério. Agora, à trilogia.

Trilogia cabeça feita

Foto - Eduardo Almeida

O cantor e compositor Ednardo libera seu valioso arsenal fonográfico, a começar por sua trilogia dos anos 80

“Venho da maravilha/do mel da jandaíra/Cheiro à flor de mangueira/ Venho da Maraponga, pitanga, milonga/Me língua de sol e de dengue”... 

Assim começam as canções cheias de luz do álbum “Terra da Luz”, o álbum azul da trilogia oitentista, completamente autoral, que Ednardo vê finalmente disponibilizada em formato digital. Os teclados e programações eletrônicas de Lincoln Olivetti, as cordas desplugadas de Manassés e a guitarra de Robertinho do Recife.

“Pastoril” é conduzida com guitarras havaianas e outros artifícios pops, talvez um tanto quanto estranhos a quem se acostumara com a sonoridade mais telúrica daquele misterioso jovem cidadão cearense. Embora esta linguagem estivesse próxima do álbum anterior, “Imã”, de 1980. Mesmo assim, um formato logo parcialmente revertido pelos violões e batuques da linda “Labirinto”. Não de todo, quando chega “Blue a Flor da Pele”.

Estamos lamentando a ausência das letras, como estratégia para diminuir custos. Também faz falta saber dos seus músicos, tão versáteis. Mas Ednardo revela-se de cara um artista ainda por se melhor conhecer, como se pode deduzir também pela genial “Baião de Dois”, misto de baião e maracatu, a desembolar-se magistralmente em torno do hoje conhecido anagrama de Iracema. E o maracatu-choro-gitano “Ser e estar”. Gente, é preciso dar valor a este cabra desabrochado entre nós. Tem mais maravilhas: o xote-rock “Como era gostoso o meu inglês”; a pedagógico-marginal-vital “Alfa Beta Ação”; a canção pop-brejeira “Asa do Invento”; a amorosa “Corações e mentes” e a visionária “Transparecer”.

Um ano depois, a brejeirice pareceria ser trocada pelo rock que atravancava-lhe a divulgação. No seu começo, “Ednardo” tem uma linguagem quase new wave, apesar da capa sugerir uma década a menos, com Ednardo de óculos escuros, violão, boina e cigarrinho. Com Manassés, Jamil Joanes (baixo) e Marcelo Sussekind (guitarra) entre seus músicos, o álbum comprova o envolvimento do cantor com o mundo pop, experiência que não soa intragável, como possa parecer.

Ednardo consegue expressar coerentemente sua liberdade visionária descontraída, em temas como “Rockcordel” e “Papai mamãe”. Na primeira, ele fala num “rockcordel pra espantar o tédio” e “acordar o prédio”, entre boas variações de andamento e boas sacações características de um olhar vislumbrado com suas origens e suas pontes com o mundo contemporâneo. A outra, uma espécie de canto tropicalista, passando pelo universo do samba informal. Horizontes poéticos e sonoros mais evidentes no rock pré-eletrônico “Nova raça”, símbolo de sua recém-chegada à “cidade sem fronteira”.

Mas sua janela telúrica continua pulsando, sobretudo entre as 12 cordas de Manassés: em “Arraial”, que une jangadas, com espigas e cana-verde, falando em “Luzia, menina-homem” e outros achados poéticos a adornar a trilha do filme de Fábio Barreto, lançado quatro anos depois. E também em “Tudo”, que fala em vozes da anunciação, cinema, romances gitanos e outras visagens elementais, como em “Encantado”, na qual a viola de Manassés também apruma “a zoada do trânsito de Copacabana” e o xaxado do “terral Ceará” em direção ao “mistério e luz da alquimia”. E tem ainda a latinidade “boa de se dançar”, mas também coerente com sua expressividade poética mais arraigada, da naturalmente telúrica “Rubi”. E “a voz que é mais sincera” também envereda pelo imprevisível carnaval sem “aperreios” de frevo com arrasta-pé: “Café com leite”. E há o baião eletroacústico “Ponto de conexão”, fechando um álbum também a se dar valor.

Em “Libertree”, o álbum verde-e-rosa (ou tricolor das Laranjeiras) desta trilogia, de cara, Ednardo coloca o sotaque cearense pra falar inglês e espanhol na faixa-título. Detalhe: a letra consta na capa do CD, quase ilegível (se você não tiver uma boa lupa) quanto as demais, na contracapa. Aliás, na capa, Ednardo dá a deixa: com olhos de gato bem ligados a dar o tom lisérgico da sua sonoridade 1985. Com Ednardo respondendo pelos arranjos, tocando bateria eletrônica e alguns teclados, quesito em que é acompanhado pelo grande Fernando Moura.

Falando em televisão e em computador, Ednardo continua exercitando suas misturas rítmicas, em “Alguém vê”. O estranhamento, não propriamente “lisérgico”, continuará em todas as demais faixas: baterias eletrônicas, sintetizadores, bandolins e violas na melhor “Esquinas” (com versos como “A vida é um instante”), “Agreste Blues”, e a mais arrebatadora de todas, “Tecer Novo Mundo”.

“Emergência geral pra geléia geral/Tá nas raias do maracujá/E quem tomar, meu amigo, as delícias do fruto da flora/Vai ver que a fauna se arranja, dando até uma canja/Ao show bizz da tv/Bananas ao vento, já faz tanto tempo/Bananas pra todo esse auê/Bananas ao vento, já faz tanto tempo/Bananas pra todo esse auê”, narra a moderna toada.

Ednardo liberta-se de vez do pudor estético, convocando um coro infantil no acalanto urbano de “O som da estrela”. A eletrônica-wave-abolerada de “Que tal nós dois por aí?”, que a letra de Ednardo volta a sustentar o que pareceria insólito dos pés à cabeça.

Ainda no pique chega “O patrão zangou”. O maracatu comparece, na sintetizada “Outro romance”, afirmando toda a sua integridade poética. A música é a mesma de “Ponto de Conexão”, que encerra o álbum anterior.
Por fim, todo esse panorama eletrônico-visionário toma a levada aviolada-com-efeitos de “Toque”, confirmando a inventividade desse intraduzível poeta da diáspora alencarina.

(HN)

SERVIÇO: “Terra da Luz”, “Ednardo” e “Libertree” - relançamentos dos álbuns do cantor e compositor Ednardo. Todos com 10 faixas, à venda na loja Desafinado (Av. Dom Luiz, 655) por R$ 15,90 (cada). Informações sobre Ednardo no site: www.ednardo.com.br


EDNARDO
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Enfim, livre do BRock

Foto - Eduardo Almeida

Ednardo 2006 - O músico desfia os tempos da Massafeira
 e a visão da sua obra na Terra da Luz

O lançamento da trilogia oitentista de Ednardo - que estava barrada no baile marqueteiro das gravadoras pela eclosão do BRock daquela década - pode representar novo fôlego para este músico imprevisível que se tornou o maior disseminador do maracatu cearense entre outros méritos.
A seguir, ele fala dos tempos pós-Massafeira.

Henrique Nunes


Caderno 3 —
Qual era o contexto em que esses discos foram feitos? Você vinha de “Imã” e do “Massafeira”...


Ednardo- É uma trilogia, a seqüência é “Terra da Luz”, “Ednardo” e “Libertree”. Quando eu vim realizar o lance da Massafeira, em Fortaleza, de 79 até 81, 82, voltei a residir em Fortaleza. Eu, a família todinha, saímos de São Paulo e viemos pra cá. E esse primeiro disco da trilogia é como se eu estivesse arribando de novo do Ceará mais uma vez rumo ao Sudeste. Por isso que eu fiz de novo essa citação à minha terra, que o pessoal chama o Ceará de Terra da Luz.... E ele tem, digamos assim, o sabor aqui da terra, desses três anos que a gente passou aqui.

— Mesmo não tendo nenhuma música “Terra da Luz”... (NR: termo consagrado pelo hino do Ceará, na letra de Thomas Lopes para a música de Alberto Nepomuceno e, em 1945, de um samba-exaltação de Humberto Teixeira).

Ednardo- É, mas tem “Labirinto” que fala justamente do nosso labirinto das rendeiras.

— Rendas que estavam na primeira capa do “Pessoal do Ceará” ou “Meu corpo minha embalagem todo gasto na viagem”...

Ednardo- É, através do Aldemir Martins, que sempre recebia de braços abertos todos os artistas, não só o Pessoal do Ceará, e nos dava muitas dicas. E, fazendo um parêntesis, achei bacana como a EMI bolou o lançamento da trilogia porque hoje em dia o grande problema dos discos, inclusive uma das causas da pirataria, é o próprio preço dos discos, que é um absurdo, dez por cento do salário mínimo... Aí, pedi para eles fazerem o disco o mais econômico possível, em respeito ao público. 
Tenho um site,
www.ednardo.com.br , com todas as letras, cifras... Achei bacana essa modalidade porque o disco ficou num preço mais acessível e, como são três, é importante que as pessoas tenham a trilogia como um todo...

— Então, os discos vinham de um tempo em que você estava em contato mais próximo com a Terrinha...

Ednardo- É todo um processo de chegada novamente ao eixo do Sudeste, no primeiro disco. No segundo, é uma coisa bem mais urbana, mas ainda mantém um vínculo, um link com o Nordeste, tem aquele lance do “Rockcordel”, uma ponte, entre John Lennon com Cego Aderaldo, e o terceiro já é mais pop, tanto que a capa sugere uma coisa mais lisérgica, meio Mangueira também, verde-e-rosa... Tem até um samba, “Papai mamãe”, um samba meio afoxé... Então, tem várias coisas que dão esse link mais urbano, mais centrado no Rio de Janeiro.

— Uma MPB contemporânea, com uma mistura de vários ritmos. Você foi um dos primeiros a mexer com isso aqui no Ceará...

Ednardo- Exato, essa coisa de misturar a informação telúrica com a coisa mais universal. Esses três discos têm esse tipo de foco, essa abordagem, mas ao mesmo tempo, eu nunca me preocupei exageradamente com relação a essa coisa de levantar bandeira, mesmo no “Terra da Luz”.

— Na tua obra, o que eles representam?

Ednardo- Na verdade, esses três discos aconteceram numa época em que a própria gravadora estava passando por uma mudança de Presidente, e a nova direção foi dar mais foco para o Rock Brasil, aí apareceram Blitz, Paralamas do Sucesso... E eles deixaram um pouco de lado essa abordagem mais “música brasileira”. Então, para mim, esses três discos são inéditos ao grande público. Porque a gravadora priorizou o rock BR. É interessante que agora, mais uma vez mudou tudo na EMI. E foi essa nova diretoria, os novos departamentos de marketing, que redescobriram esses discos. Tomei um susto quando eles telefonaram lá para casa, dizendo: “nós não sabíamos que você tinha três discos aqui”... E eram apenas esses que faltavam ser transformados em CDs porque os outros já foram pelo meu próprio selo.

— Coincidentemente, são os discos que você fez nos anos 80, além do “Imã” e da “Massafeira”...

Ednardo- É, tem esses três e tem as trilhas de cinema que eu fiz: “Tigipió”, “Luzia Homem” e “No calor da pele”, também na década de 80.

— Essas trilhas já estão em CD?

Ednardo- Isso aí é um lançamento ainda para este ano, através do meu próprio selo. Porque eu ia até lançar no início do ano, mas foi quando eu recebi essa notícia de que a EMI estava querendo lançar esta trilogia... Aí, não é interessante jogar muitos discos ao mesmo tempo, três eu acho que já está de bom tamanho (risos).

— Mas voltando um pouco, você vinha da Massafeira, de um novo contato com a produção não só do Ceará, mas de toda a região... O que esse movimento te deu de novo naquela época, e que pode até estar refletido nestes discos?

Ednardo- Era gente de todo lugar, umas trezentas e pouco pessoas. Porque ali, iniciava por volta das quatro, cinco horas da tarde, e ia até quatro, cinco horas da manhã... Era um movimento de música, teatro, cinema, literatura, dança, artes plásticas... Olha, eu digo que o que me marcou mesmo seria essa união saudável entre uma geração que já estava aí, mas que era completamente desconhecida.... Se você pegar Patativa do Assaré, que é estudado como um fenômeno de comunicação, em Sorbonne, essa coisa todinha... Ele era desconhecido em Fortaleza!... Cego Oliveira... Deixa ver se eu me lembro das pessoas que vieram dessa geração do interior: foi Patativa do Assaré, Cícero do Barro Cru, a Banda dos Irmãos Aniceto, Cego Oliveira, vieram uns violeiros, cantadores e repentistas que não dá para lembrar... E foi interessante, a junção também com a geração mais nova. Que, eu, Belchior, Fagner, Amelinha, o Rodger, a Téti, a gente já estava com a carreira mais ou menos sedimentada, alguns mais, outros menos... E a geração novíssima, lançando as suas primeiras músicas, suas primeiras composições, demonstrou também muito interesse, muita energia e garra de participar: gente como Caio Sílvio Graco, o Cale Alencar, o Rogério Soares e o Régis Soares, Mona Gadelha, o Ferreirinha, que depois se chamou Francisco Casaverde, Ana Fontelles, Zezé Fontelles, Jabuti, uma quantidade de pessoas que fica até difícil falar.

— Apesar disso, nestes três discos você não faz nenhuma parceria. Por que? Era um momento mais maduro?

Ednardo- Em todos os meus discos, eu sempre abri espaço para parcerias ou até para interpretar músicas de outras pessoas, e esse foi um momento em que estava com uma grande quantidade de músicas que eu havia feito, e coloquei esses três discos de um modo mais autoral mesmo, embora eu tivesse outras composições com parceiros... Mas fiz questão de manter uma continuidade porque tudo o que tem no primeiro disco, tem um referencial com o segundo e este com o terceiro, existe uma seqüência, um encadeamento de progressão nesses três discos... E incorporando outros parceiros, fatalmente eles viriam com outras enfoques. E eu já tinha a intenção de fazer os três discos de uma vez só, mas naquela época não dava, e a gravadora dizia: não dá, um de cada vez, calma aí...

— Mas eles foram da mesma fornada, para usarmos um termo da Padaria Espiritual de que você é tão próximo...

Ednardo- Mais ou menos da mesma fornada.

— Em “Rubi”, do segundo destes discos, você fala da “fala brasileira” e da “voz que é mais sincera”. Esse lado telúrico aflorou novamente naquele período?

Ednardo- “Ver a flor do trigo que é bela”... Sim, é interessante, eu residi em São Paulo uns sete ou oito anos. Uma cidade grande, cosmopolita, aquela falta de horizonte... Aonde você se vira é prédio por todo lugar, e Fortaleza também está ficando parecida com essa coisa... E essa volta a Fortaleza, durante esses três anos e meio, quase quatro anos, me fez resgatar essa lado de que eu já estava me distanciando um pouco. O próprio “Imã” é um disco extremamente urbano, feito em um momento em que eu estava ainda eivado com a capital de São Paulo, aquela coisa todinha, apesar de ter sido gravado no Rio... Então, foi uma coisa muito boa, resgatar esse lado, passar três anos aqui, morava numa casa na beira da praia, de manhã cedinho ia pegar peixe fresquinho.  E ao mesmo tempo, a partida de novo para o eixo Rio-São Paulo fez com que fosse assim um novo êxodo, claro que dentro de uma outra perspectiva.

— Essa fornada se manteve até o “Libertree”, o mais urbano de todos?

Ednardo- Não, esse eu já fiz quase todo já na época mesmo da gravação. Quando eu digo a mesma fornada, eu falo da mesma intenção criativa. Isso não significa que todas as músicas foram feitas de uma vez só. No segundo, “Ednardo”, também tem músicas de lá e daqui.

— Eu queria que você descrevesse mais um pouco como você vivenciava e vivencia a cultura popular, que no “Terra da Luz”, aparecia em “Pastoril” e “Labirinto”, e com que a tua música sempre foi tão próxima...

Ednardo- Eu penso que o artista é depositário legítimo, fiel, daquilo que está em sua volta, da cultura popular, dessas coisas todinhas. E é legal a gente entender que esses mestres da cultura muitas vezes não têm acesso ao grande público. Hoje em dia, claro que estas coisas estão se transformando um pouco, mas ainda é muito limitado em relação à importância deles. Então, quando a gente tem oportunidade de alcançar uma gama maior de comunicação, a gente eiva estas coisas com o que estes mestres têm para oferecer. Desde criança, o meu pai professor, minha mãe também, me ofereceram a possibilidade de ter acesso a muitos livros, muitos discos... Ele da Serra da Ibiapaba, minha mãe, de Sobral, e a gente viajava muito por todos estes lugares, pelo Sertão Central e pelo Cariri... Então, vai impregnando, de uma certa forma, tudo aquilo que a gente faz, é um processo quase de osmose, você tem contato e aquilo ali fica retido no cérebro, no coração da gente... Então, isso aí é escoado desta forma.

— Claro que hoje o contato é bem menor...

Ednardo- É, eu já estou no Rio há 20 anos. E em São Paulo passei uns oito anos. Mas eu venho muitas vezes por ano aqui. No ano passado, eu vim umas oito vezes. Esse ano, já vim duas vezes. No dia 10, eu vim fazer um show com a Amelinha e o Belchior na região do Cariri, pela rádio Vale Fm junto com o nosso produtor que fez o disco “Belchior, Ednardo e Amelinha”, o Hélio Santos, que voltou a residir em Juazeiro. Foi gente pra caramba, nós cantamos das onze e quinze da noite até as duas e quarenta e cinco da manhã, o povo não queria mais deixar a gente sair.

— Mas desde os anos 90, talvez por conta do Mangue Bit, a mídia e o público despertaram de novo para a cultura popular. Nestas suas vindas pra cá, você percebe isso?

Ednardo- A gente nota que já tem uma outra geração, pós-Massafeira, de pessoas fazendo trabalhos muito importantes aqui, juntando informações culturais mais antigas com abordagens mais modernas, pessoas maravilhosas que fazem releituras dentro do maracatu, do baião, do xote, as pessoas dos tambores, que têm crescido muito... Porque Fortaleza sempre teve isso daí. Agora, às vezes tem um lance, que os espaços ainda são muito acanhados para as pessoas daqui. A gente mesmo que já tem uma aceitação nacional e internacional, vem menos aqui do que gostaria. Falo assim, cantando para o grande público. Imagine o pessoal que mora aqui, eles devem enfrentar uma dificuldade muito grande.

— Não é porque o cearense ainda respeita mais o que é de fora? A gente percebe até que os cantores da noite tocam mais Djavan do que Ednardo, por exemplo...

Ednardo- Tenho impressão que não é que o público cearense seja assim, acho que é o que é oferecido a ele. Existe a canalização para que essa coisa de fora esteja mais presente aqui, e o público acaba aceitando o que é oferecido. Claro que isso vai formando gerações que desconhecem os artistas nascidos aqui... Quando eu falo artistas cearenses, não quero colocar de forma bairrista, mas sim como pessoas que estão aqui e podem ser respeitadas em qualquer lugar do Brasil ou do exterior... Agora, existe realmente um afunilamento muito preocupante até. Uma geração nova, se ela não tiver maneira de se expressar, de escoar sua produção artística, cultural, vai definhando. Isso daí é finito, se ela não ganhar força, o público não conhece o que ela está fazendo e vai, ao mesmo tempo, recebendo mais o que vem de fora. De uma certa forma, é até prejudicial.

— Sobretudo em Fortaleza, há uma desvalorização da nossa identidade, da nossa cultura, mesmo dessa tradição musical mais pop, como a MPB.

Ednardo- Eu não sei se isso é tão generalizada. Impressionantemente, em outras cidades do Brasil, a quantidade de cearenses que aparece na platéia é enorme. Mas talvez haja sim uma característica do povo cearense, que é muito nômade e, atavicamente, não cria muitas raízes. Nem aqui mesmo. Isso não deixa de influenciar no seu comportamental, nos seus costumes, em algo que seria uma coisa de auto-valorização com a sua terra, embora, quando está fora, aí é que o cearense valoriza, fica mais interligado com a sua própria terra. Mas enquanto ele está aqui, o desejo dele é sair...

— Já pessoas como Lenine, Zeca Baleiro e Chico César sempre contam que apreciam muito o teu trabalho. O mercado também está mais atento a isso.

Ednardo- É verdade, e gosto muito deles, acho que é uma geração valorosíssima, e eles aprenderam muito com a gente, também. Assim como aprendi com Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, essas coisas todas. Mas não paro de fazer shows. O fato de não estar vindo aqui com tanta freqüência, não implica que tenha perdido contato com o público.

— No Carnaval, você vinha fazer um show que acabou gorando. O que houve?

Ednardo- Houve um impedimento aí meio maluco. Tenho proximidade com o maracatu cearense muito grande, desde antes de sair daqui (Fortaleza). E o maracatu na década de 70 quase sumia do Carnaval, foi definhando, diminuindo, justamente por falta de valoração da transação toda. E tem o seguinte detalhe, uso o maracatu cearense desde o primeiro disco gravado. No segundo então, ficou mais explícito com “Pavão Mysteriozo”, esses discos (atuais) também têm de forma mais sofisticada. Cheguei a sair em um maracatu, Rei de Paus. Inclusive, nessa época, fiz o filme “Cauim”, que é o mesmo título do disco, da Warner, na contracapa, estou caracterizado, com o rosto pintado de preto e a coroa na cabeça.
Então, minha intimidade com o maracatu é grande. E fui convidado pela Funcet, mas uma das agremiações falou que se eu fosse cantar, iria ajudar a um maracatu. Achei isso meio sem sentido, ilógico, até surreal demais. Porque não fui convidado para desfilar em nenhum bloco, fui convidado para fazer um show depois dos desfiles, uma hora da manhã. Eu ia retroagir para favorecer alguém? Uma maluquice (risos).


— Indo para um tema mais agradável, você recebeu, na tua outra vinda pra cá este ano, a Medalha Lauro Maia, da Câmara Municipal de Fortaleza, o principal reconhecimento da cidade aos músicos cearenses. Como foi?

Ednardo- Foi legal, eu estava em ótima companhia: eu, o Evaldo Gouveia e também Humberto Teixeira, representado pela filha dele, Denise Dummont. Acho importante isso daí porque não deixa de ser uma comenda que faz com que a gente receba com muita gratidão, porque é um reconhecimento de um montante de trabalhos realizados.