Felipe Araújo Da
Redação
"Eu venho das dunas brancas/ Onde eu queria
ficar/ Deitando os olhos cansados/ Por onde a vida alcançar/ Meu céu é
pleno de paz/ Sem chaminés ou fumaça/ No peito enganos mil/ Na Terra é
pleno abril" - "Terral" (Ednardo)
Nem a vista das "dunas brancas"
nem o "céu pleno de paz" impediram Ednardo de arribar de sua aldeia para
tentar o "Sul, a sorte e a estrada". Os tempos eram de dificuldade
política, mas também de muita esperança para aquela leva de artistas que
partiam de diferentes pontos do Nordeste rumo ao "videotapes" e "revistas
supercoloridas". Muitos acabaram sobrando na curva do destino. Outros
tantos queriam apenas ver a "menina meio distraída" repetindo a voz dos
cantores consagrados - como diziam os versos de "Carneiro", parceria de
Ednardo com Augusto Pontes. Poucos conseguiram fazer história.
Na
bagagem para São Paulo, onde desembarcou junto com o "Pessoal do Ceará" no
início da década de 1970, Ednardo levou as memórias de uma Fortaleza ainda
ingênua, que apenas começava a experimentar o "som e a velocidade" de
novos tempos naquela virada dos 60 para os 70. Mas em vez de se perder no
caldeirão de signos da metrópole e nas tretas do mercado fonográfico, a
saudade da terra natal cravou marca na alma e virou um mote poético ao
qual o compositor recorrentemente se voltou ao longo de mais de trinta
anos de carreira.
"Vai meu filho vai/.../Só não esqueça de voltar
para ver/ O que restou desse lugar/ Que o sol e a chuva/ E os homens
práticos/ Vão modificar", ele canta em "Avião de Papel". Pois Ednardo não
só não esqueceu de voltar para ver e abraçar poeticamente sua aldeia; como
fez de Fortaleza uma inspiração terçã em seus versos. Sucessor de Ramos
Cotoco, Lauro Maia e Luiz Assunção, seu canto insistiu em falar de coisas
nossas, sem folclorizar nosso rosto nem inventar falsas tradições para a
Cidade. Sua lírica é uma rota semiótica de mão dupla que tenta entender
seu lugar de origem a partir de seu tempo enquanto canta sua geração a
partir das referências que constituem a vida da Província.
Logo em
seu primeiro disco - onde grava "Terral", " Palmas pra dar Ibope" (com seu
aviso sobre o "desassossego" e o "veneno" que rondavam a nossa aldeia) e "
Beira-Mar" -, o cantar Fortaleza se revela com urgência para Ednardo.
"Viva o som, velocidade/ Forte, praia, minha cidade", ele dispara em
Beira-Mar. "A cidade é bem mais que um pano de fundo para uma história de
amor. Ela é personagem. Não é qualquer beira de mar de qualquer cidade do
Brasil, mas uma Beira-Mar localizada, a de Fortaleza. Uma Beira-Mar com
seu footing provinciano, seus bares, sua estátua de Iracema onde "Só o meu
grito nega aos quatro ventos/ a verdade que não quero ver", analisa o
jornalista e professor Gilmar de Carvalho no ensaio Referenciais Cearenses
na Música de Ednardo, o mais completo sobre a trajetória do
compositor.
Ednardo veio de longe, mas também veio de dentro de si,
como ele sugere em "Blues à flor da pele". Ele é também o compositor de
"Pastoril", que saiu "do mel da jandaíra" e veio da Maraponga. Essa
geografia íntima do artista, que começou a se mostrar ao Brasil através do
sucesso de "Pavão Mysteriozo" - onde o maracatu cearense embala a
literatura popular -, reafirmou Fortaleza como uma cidade a partir da qual
também é possível fazer poesia. E, sobretudo, uma poesia cosmopolita e
engajada.
No jogo poético de "Baião de Dois", por exemplo, Ednardo
desconstrói em anagramas o mito fundador de sua terra: "Iracema ama/
Iracema ara/ Iracema ima/ Iracema cara/ Iracema rima/ Iracema mar/ Iracema
é América". Em "Passeio Público", ele resgata o episódio da prisão de
Bárbara de Alencar: "Hoje ao passar pelos lados/ Das brancas paredes,
paredes do forte/ Escuto ganidos de morte/ Vindos daquela janela/ É
Bárbara, tenho certeza". Mito e história, portanto, são duas balizas de
uma obra que se propõe telúrica não para dar corda em qualquer ufanismo
publicitário, mas apenas para falar ao mundo.
As musas de Ednardo,
como a Elvira de "Brincando é que se aprende", podem vir tanto do Braz,
quanto de Ipanema, quanto da Aldeota, não importa. O que importa é, como
diz a letra de "Imã" a "canção ao vento leve" que a raiz "espalha em cada
folha". Falando da saudade do verde mar da Cidade, da eterna briga entre o
mar e as pedras da Praia de Iracema, ele diz em "Longarinas" que a "moda"
não muda "seu mote".
Claro que a obra de Ednardo não se encerra nas
canções que falam explicitamente sobre Fortaleza. Essas, na verdade, são a
minoria dentro de seu vasto repertório. Mas esse "mote" a que ele se
refere em Longarinas, que se desdobra em sua música ora como o ponto de
partida ora como ponto de chegada para sua trajetória de vida, serve
sempre de sombra - uma serena e pacata sombra poética - para suas canções
sobre o amor, sobre a indústria cultural, sobre a política.
Em sua
música, Ednardo flagra Fortaleza como a cidade sem uma tradição cultural
específica, ao contrário de Salvador, Recife ou Rio de Janeiro. Mas não
faz disso uma muleta para a covardia criativa ou para a alienação
gratuita, traços que, com raras exceções, seguem embalando nossa cena
artística. Pelo contrário, ele entende Fortaleza como um terreno
absolutamente livre para o risco, para a invenção, para o diálogo. "Coma
tudo o que você puder/ Arrote e coma você mesmo até/ Consuma tudo em suma/
Definitiva e completamente/ Na destruição somente deste absurdo
aniquilamento/ É que talvez surja um outro novo momento", diz a letra de
"Padaria espiritual". Eis nossa encruzilhada cultural primeva: se a
arte essencialmente de Fortaleza é uma impossibilidade histórica, que viva
a arte em Fortaleza. |