REVISTA FORTALEZA - Jornal O POVO
Fortaleza, 25 de Junho de 2006 - Domingo
FELIPE ARAÚJO
O canto da encruzilhada

Compositor que fez de Fortaleza um mote recorrente para suas músicas,  Ednardo evidenciou o impasse primordial da arte na Cidade.

Felipe Araújo
Da Redação

"Eu venho das dunas brancas/ Onde eu queria ficar/ Deitando os olhos cansados/ Por onde a vida alcançar/ Meu céu é pleno de paz/ Sem chaminés ou fumaça/ No peito enganos mil/ Na Terra é pleno abril" - "Terral" (Ednardo)

Nem a vista das "dunas brancas" nem o "céu pleno de paz" impediram Ednardo de arribar de sua aldeia para tentar o "Sul, a sorte e a estrada". Os tempos eram de dificuldade política, mas também de muita esperança para aquela leva de artistas que partiam de diferentes pontos do Nordeste rumo ao "videotapes" e "revistas supercoloridas". Muitos acabaram sobrando na curva do destino. Outros tantos queriam apenas ver a "menina meio distraída" repetindo a voz dos cantores consagrados - como diziam os versos de "Carneiro", parceria de Ednardo com Augusto Pontes. Poucos conseguiram fazer história.

Na bagagem para São Paulo, onde desembarcou junto com o "Pessoal do Ceará" no início da década de 1970, Ednardo levou as memórias de uma Fortaleza ainda ingênua, que apenas começava a experimentar o "som e a velocidade" de novos tempos naquela virada dos 60 para os 70. Mas em vez de se perder no caldeirão de signos da metrópole e nas tretas do mercado fonográfico, a saudade da terra natal cravou marca na alma e virou um mote poético ao qual o compositor recorrentemente se voltou ao longo de mais de trinta anos de carreira.

"Vai meu filho vai/.../Só não esqueça de voltar para ver/ O que restou desse lugar/ Que o sol e a chuva/ E os homens práticos/ Vão modificar", ele canta em "Avião de Papel". Pois Ednardo não só não esqueceu de voltar para ver e abraçar poeticamente sua aldeia; como fez de Fortaleza uma inspiração terçã em seus versos. Sucessor de Ramos Cotoco, Lauro Maia e Luiz Assunção, seu canto insistiu em falar de coisas nossas, sem folclorizar nosso rosto nem inventar falsas tradições para a Cidade. Sua lírica é uma rota semiótica de mão dupla que tenta entender seu lugar de origem a partir de seu tempo enquanto canta sua geração a partir das referências que constituem a vida da Província.

Logo em seu primeiro disco - onde grava "Terral", " Palmas pra dar Ibope" (com seu aviso sobre o "desassossego" e o "veneno" que rondavam a nossa aldeia) e " Beira-Mar" -, o cantar Fortaleza se revela com urgência para Ednardo. "Viva o som, velocidade/ Forte, praia, minha cidade", ele dispara em Beira-Mar. "A cidade é bem mais que um pano de fundo para uma história de amor. Ela é personagem. Não é qualquer beira de mar de qualquer cidade do Brasil, mas uma Beira-Mar localizada, a de Fortaleza. Uma Beira-Mar com seu footing provinciano, seus bares, sua estátua de Iracema onde "Só o meu grito nega aos quatro ventos/ a verdade que não quero ver", analisa o jornalista e professor Gilmar de Carvalho no ensaio Referenciais Cearenses na Música de Ednardo, o mais completo sobre a trajetória do compositor.

Ednardo veio de longe, mas também veio de dentro de si, como ele sugere em "Blues à flor da pele". Ele é também o compositor de "Pastoril", que saiu "do mel da jandaíra" e veio da Maraponga. Essa geografia íntima do artista, que começou a se mostrar ao Brasil através do sucesso de "Pavão Mysteriozo" - onde o maracatu cearense embala a literatura popular -, reafirmou Fortaleza como uma cidade a partir da qual também é possível fazer poesia. E, sobretudo, uma poesia cosmopolita e engajada.

No jogo poético de "Baião de Dois", por exemplo, Ednardo desconstrói em anagramas o mito fundador de sua terra: "Iracema ama/ Iracema ara/ Iracema ima/ Iracema cara/ Iracema rima/ Iracema mar/ Iracema é América". Em "Passeio Público", ele resgata o episódio da prisão de Bárbara de Alencar: "Hoje ao passar pelos lados/ Das brancas paredes, paredes do forte/ Escuto ganidos de morte/ Vindos daquela janela/ É Bárbara, tenho certeza". Mito e história, portanto, são duas balizas de uma obra que se propõe telúrica não para dar corda em qualquer ufanismo publicitário, mas apenas para falar ao mundo.

As musas de Ednardo, como a Elvira de "Brincando é que se aprende", podem vir tanto do Braz, quanto de Ipanema, quanto da Aldeota, não importa. O que importa é, como diz a letra de "Imã" a "canção ao vento leve" que a raiz "espalha em cada folha". Falando da saudade do verde mar da Cidade, da eterna briga entre o mar e as pedras da Praia de Iracema, ele diz em "Longarinas" que a "moda" não muda "seu mote".

Claro que a obra de Ednardo não se encerra nas canções que falam explicitamente sobre Fortaleza. Essas, na verdade, são a minoria dentro de seu vasto repertório. Mas esse "mote" a que ele se refere em Longarinas, que se desdobra em sua música ora como o ponto de partida ora como ponto de chegada para sua trajetória de vida, serve sempre de sombra - uma serena e pacata sombra poética - para suas canções sobre o amor, sobre a indústria cultural, sobre a política.

Em sua música, Ednardo flagra Fortaleza como a cidade sem uma tradição cultural específica, ao contrário de Salvador, Recife ou Rio de Janeiro. Mas não faz disso uma muleta para a covardia criativa ou para a alienação gratuita, traços que, com raras exceções, seguem embalando nossa cena artística. Pelo contrário, ele entende Fortaleza como um terreno absolutamente livre para o risco, para a invenção, para o diálogo. "Coma tudo o que você puder/ Arrote e coma você mesmo até/ Consuma tudo em suma/ Definitiva e completamente/ Na destruição somente deste absurdo aniquilamento/ É que talvez surja um outro novo momento", diz a letra de "Padaria espiritual".
Eis nossa encruzilhada cultural primeva: se a arte essencialmente de Fortaleza é uma impossibilidade histórica, que viva a arte em Fortaleza.