EDNARDO DÁ O GRITO:
Artistas cearenses, uní-vos

Jornal O Povo - Caderno 2
Fortaleza, 16 de Setembro de 1980
Entrevista Condensada
Notas de Aura Edições Musicais
CARLOS PAIVA

Ednardo, a contragosto, resolve dar uma entrevista. O cantor e compositor, ao contrário do que pode estar pensando o leitor, não é figura "mascarada", tímida ou coisa do gênero. O contrário mesmo, Ednardo é o que se pode classificar de pessoa doce, acessível e mesmo no pique do sucesso, não se nega a receber ninguém. Seja para dar entrevista, conversar, ouvir e ler, pacientemente, composições de músicos, ver trabalhos de pessoas e artistas interessados em produzir.
"Sim, Ednardo, e não quer falar porque?"
Ao contrário da maioria dos artistas brasileiros, o criador de "Ingazeiras" é uma pessoa organizada e no presente momento está com toda atenção voltada para seu próximo disco. No presente estado, o Ednardo doce e afável vira um ermitão, mete-se no seu gabinete de trabalho e só dar colher de chá à sua filha Joana, seu filho Gabriel e papo com Rosane, sua mulher.

 

BIO-SÍNTESE

O que dizer, mais, sobre a biografia de Ednardo. Ele nasceu e cresceu em Fortaleza, e como muitos, fez primário, admissão, científico e entrou na faculdade (Química). Como todo cearense, frequentou tertúlias, aprendeu a nadar na piscina da Praia de Iracema (onde se desenrola a entrevista), curtiu a sessão das cinco no Cine Diogo, (como Belchior, também colecionou camisas sujas de baton), bebeu cachacinhas na rua Sena Madureira. Isso até os meados da década de 60, quando ancorou no Bar do Anísio com os "musicais". Aí deixou a proveta de lado e resolveu que seria cantor e compositor. Sua fase beira-mar deixou-nos uma pérola da canção brasileira. "Na beira-mar / entre luzes que lhe escondem..."

Foi o tempo também dos programas na TV Ceará, da decisão de abraçar definitivamente o violão, das grandes parceiradas (Augusto Pontes e Brandão entre os principais) e a busca pelo grande mercado em São Paulo. Dessa fase, uma profecia, uma gozação, uma filosofia "Vou voltar em vídeo-tape". Foi e voltou. Em revistas a quatro cores, discos, jornais tape, novela. Foi, voltou e ficou na boca de todo o povo brasileiro. 


A inquietação de Ednardo é unir o pessoal artístico do Ceará

AS GRAVES MUDANÇAS

As coisas todas mudaram, e muito. A tristeza foi muito violenta.
"O que realmente aconteceu durante últimos 15 anos, período de obscurantismo político, é muito difícil dizer, Mas sei o que eu sofri, embora jornais da época não tenham contado" ...(Ednardo faz uma pausa)...
O Estoril, na tarde cai-não-cai, é um espetáculo delicioso. Tem ruído de mar, tem jangada ao longe seguindo a mira da ponte velha, tem crianças brincando na famosa piscina, pedacinho querido da cidade, quando o mar nos tirou os coqueiros e o cais, nos deu as pedras e a piscininha natural, os velhos chiaram, as crianças aplaudiram...

E Ednardo continua - "...foi o pão que o diabo amassou, nos shows pelo Brasil, antes ou após cantar, vinha um recado - tem um pessoal querendo falar com você - entravam no camarim, três a cinco policiais da repressão, revistavam, abriam bolsas pessoais, pediam documentos,
(N.E. - naqueles tempos, tinha a famigerada "carteira de permissão" de trabalho artístico, fornecida pelo departamento de polícia e censura federal), eu não tinha sossego. Em Fortaleza, após show, fui levado a um lugar escuro, cercado por policiais. Não apanhei porque um dos organizadores inventou que o governador era meu amigo. Naquela época, como hoje, ser amigo de estudante, fazer homenagem a intelectual e pedir liberdade era sinônimo de terror".
Essas e outras coisas que ocorrem com dezenas de artistas brasileiros ninguém sabe e não interessa mais.
- "Mas tem uma, se Gil, Caetano, Chico Buarque, levam carão da polícia, no outro dia é manchete em todo o Brasil".

EXPLICANDO

Citando os baianos e Chico Buarque, Ednardo não está criticando colegas por quem tem grande admiração. Está levantando um dos mais graves problemas da canção cearense: a desunião.
- "Baianos e Mineiros, por exemplo, entre si, individualidades e rivalidades artísticas à parte, se ajudam e se promovem mutuamente, na sua terra e terras dos outros, são mais que irmãos. Com Cearenses, ocorre coisa que precisa ser estudada por cientistas.
A mania de destruição e conseqüente autodestruição. No sufoco, devíamos ter colegas nos protegendo, (aguardando recíproca, claro), o que vemos? - Queimação, luta surda nos bastidores e palcos. Resulta em nos tornarmos frágeis em grandes centros, como Rio e São Paulo.

(N. E. AURA: Na entrevista à Carlos Paiva - jornalista e teatrólogo - realizada dois meses após invasão pela polícia repressiva da ditadura, no apartamento de Ednardo, em Fortaleza,  o Artista não cita este fato nem comenta que os discos produzidos por ele - Massafeira e Imã - estavam retidos na gravadora. O momento ainda era de impacto da recente violência, dificilmente seriam narrados ou publicadas de forma clara, ainda era tempo da "distensão da repressão, lenta e gradual".  Mas estes fatos são esclarecidos, anos depois, em 12/04/2004, na entrevista de Ednardo ao jornalista Felipe Araújo - Jornal O Povo - NO ESCURO DESSA NOITE - leia neste site, ou no site do jornal.  http://www.noolhar.com/opovo/paginasazuis/355227.html  )

OS NOVOS

A desunião, na opinião do Ednardo, prejudica, inclusive, jovens compositores. "Estamos em excelente fase de criatividade. Nunca tantos criaram tanto, gente com 18 anos anos com músicas incríveis. Esse pessoal de repente, sem maiores luta, se vê incluído num LP Duplo de projeção nacional, (MASSAFEIRA) com pouco tempo de estrada, quase sem experiência de ter pregado um prego numa barra de sabão, pode ser perigoso, são jovens e ficam desorientados em conseqüência de brigas mesquinhas. Alguns assinam contratos desvantajosos de cinco anos e ficam presos, na ilusão do sucesso. Gravadoras querem isso, segurar os novos, e se produzirem muito, vão repassando, ao pessoal que está na moda. São assim involuntariamente, parte da reserva forçada.

UNIÃO E PESQUISA

O cantor vai contando episódios pitorescos, da necessidade do homem voltar à natureza, adaptar-se e aderir às coisas simples, de batalhar numa boa. Lembra dos ancestrais índios, que plantavam, colhiam, preparavam seus alimentos, faziam a própria roupa, conheciam as ervas que curavam. " O pessoal se bastava, a vida era mansa".
E novamente fala na dispersão de toda uma geração: - "A tal auto-flagelação é incrível. Não brigam para abrir espaços, se mostrar. Mais importante que ficar xingando, pixando, lamentando, por que não fazer alguma coisa para abrir um lugar, um espaço. Vejo que a desunião não é só no campo da música, é também no teatro, jornalismo, poesia... Caras incríveis, não vou citar nomes, preferem dizer que o outro está errado, a fazerem o que acham certo. A criação se perde nas noites, em papos vazios... que outros aproveitam... e a turma deitando água fora da bacia...

MUDAR

A inquietação de Ednardo é esta: unir o pessoal artístico do Ceará. Promover e fazer imenso concílio entre todos, jogo aberto. Os podres pra fora, rever tudo, única forma de pegar novamente o fio da meada. Todos ao trabalho, chega de conversa fiada.
"Temos um imenso material para trabalhar, vamos ver tudo, está tudo muito perto, fácil de pesquisar. As pessoas estão todas aí.
É isto que basta: rever, criticar, acertar o passo e tocar pra frente".


Podemos caminhar sem esbarrar nos outros
Sem mania de autodestruição


Texto especial e poesia de Ednardo, para entrevista:

NA PISADA DO CAMINHO

"Existem duas pisadas de caminho, uma, a do pé na poeira do chão, outra, o vôo da cabeça. As duas entranhadas, entre mistérios, unificadas numa sina solitária & plural da existência. Então é uma só, embora sendo muitas.
De cabeça para baixo, de cabeça para cima, o homem é uma estrela de cinco pontas - o mistério da santíssima trindade - uma é ele, a outra é ele, e a outra é ele também. Neste caminho o horizonte fica mais longe e maior e mais bonito quanto mais se caminha em direção a ele, e cego é quem vê só até onde a linha do horizonte corta. E tem mais, botou o pé no caminho, tem que caminhar.

UM PONTO DE VISTA NA ENTREVISTA

É preciso acabar com o medo, o ódio e todos os sentimentos que destroem o corpo que habitamos, dizem as cantigas, rezas e poesias, dizem os homens nas suas cotidianas angústias, e tratam estas coisas à distância, como se elas vivessem fora deles e não dentro deles.
Faz tempo, entrou em nossa casa o visitante indesejável, que tenta arrancar nossos olhos, cortar nossa língua, estourar nossos ouvidos e imobilizar nosso corpo.

A televisão nos convida a ser feliz e compromete todo nosso salário máximo para o resto de nossas vidas. Já reparou que precisamos comprar a Água, o Fogo, a Terra, e o Ar? Dividem nossos corpos em pedaços retalhados, assim fica mais fácil expor nas vitrines. Mas esse carro é um veículo maravilhoso, só precisamos saber para onde ele nos leva e manter a possibilidade de opção de escolher outra rua para passear.

Não pense que estou louco, só estou rouco de tanto gritar, vou na bodega da esquina, um pouco de cachaça, limão e mel de abelha e volto já pra lhe dizer que do lado desconhecido dessa cidade, é sempre dia, o sol de cada um (de todos) brilha muito e sempre e nunca os gatos são pardos mesmo sendo noite e mesmo sendo noite é sempre dia.

AQUI EM FORTALEZA

Fazer de conta que somos todos meninos e meninas, desacostumados a fazer de conta, cantar, sonhar, brincar, descobrir espantado o mistério de universo engatinhando pelo chão. Faz tempo que quase todos se colocaram no duro ofício de ganhar a vida.
Esqueceram que o espaço a ser alcançado é vertical, em direção pro alto, pra luz, aqui na Terra podemos caminhar sem esbarrar uns nos outros, pra cima o limite é o pique de cada um, e sendo juntos, é o pique de todos.
Qualquer dia desse faço um livro falando de:
Arte & Sociedade Saciada
Arte & Ansiedades Emergentes
Arte & Artistas & Ativistas
Cultura Dominante & Dominada
Cultural & CCC Kultural
Fortaleza Voz & Vez - Eixo rolante
Temperatura Brasileira
A Bomba Z

Agora não, agora tô de saco cheio e tô sabendo que o melhor lugar do mundo, pode também não ser aqui e agora.

Ednardo
Fortaleza, 06 de Agosto de 1980


IMÃ

Letra & Música - Ednardo

Rasgando um buraco no azul
Tu afloras feito o arco-íris
Com um pé pisando no tempo e o outro no espaço
E molha a sequidão do meu rosto de pedra
Na água cristalina
Em nosso rastro ferido arde o Brasil e a nossa sina
Nada te dou como herança
Nada quero
A vida é uma pessoa sem medo no caminho
Tudo te dou como herança
Tudo quero
A vida é uma pessoa sem medo no caminho

Estrela de cinco pontas - Luminando noites
Do universo do chão ardendo - Luminando noites
Habitamos o verbo chamado homem - Luminando noites

Cumprindo o destino de ser
A raiz aflora na terra
E bebe os segredos da areia
Espalhando em cada folha uma canção ao vento leve
Leve é aquilo que brota muito além do medo
Serena é a coragem de tudo aquilo que é
Que é quem sempre caminha e nunca pensa que tarda
E sua flecha certeira
Sempre crava na luz e sempre amanhece