O PESSOAL DO CEARÁ
Do Ceará para o Mundo,
A Voz Urbana do Nordeste

JORNAL DO BRASIL
REVISTA DO DOMINGO
Rio de Janeiro 29/05/1977 - Ano 2 - N° 60
Matéria Condensada


EDNARDO - Capa da Revista do Domingo JB - Foto de Vieira Queiroz

 HORA DA VERDADE
Maria Helena Dutra

De acordo com as regras não escritas do consumo e da máquina, o Pessoal do Ceará (reportagem na página 16), deveria suceder ao grupo baiano na idolatria dos jovens.
Chegou inclusive a ser apresentado à imprensa carioca, há cerca de seis anos, como pobre mas homogênea equipe disposta a cantar sem qualquer folclorismo, mas com muita verdade o Nordeste atual.
O engraçado é que este encontro foi realizado em luxuoso apartamento em Copacabana, com fino serviço de iguarias e bebidas e seu coordenador era um bem-sucedido homem de televisão e do marketing de astros.
Só que desta vez não deu certo. Ao contrário dos baianos e de seus amigos que haviam reunido sob o denominador comum de igual maneira de viver e de idéias artísticas semelhantes, capazes de detonar o importante movimento do tropicalismo, infelizmente externamente abortado, os cearenses só tinham em comum as idades, as origens e o fracasso comercial de seus primeiros discos individuais.
Rejeitados pelo público, foram também abandonados pelas apressadas gravadoras e voltaram para o limbo das dificuldades.
No ano passado, não por coincidência mas pela natural evolução, três dos seus integrantes chegaram ao sucesso por peculiares e diferentes maneiras.

Ednardo, o mais retraído e de trabalho bem criativo, foi beneficiado pelo toque de Midas da telenovela, e seu Pavão Mysteriozo, abertura de Saramandaia, colocou-o em primeiro lugar das paradas. Um evento que em nada o modificou, como prova seu terceiro, seco e contido LP O Azul e o Encarnado.
Nada igual ao conteúdo do também terceiro disco de Belchior, que conheceu a glória em 1976 fazendo rock para Elis Regina e se apropriando na primeira pessoa do singular da moda latino americana.
Em menor escala e sem recordes de vendagens, Fagner andou e está lotando teatros e cooptando os inocentes do final do Leblon, após um bom e também terceiro disco.
Diz porém Gonzaguinha, profundo conhecedor de trajetórias, que é depois deste terceiro disco que as verdades realmente se impõe. E elas vão compor agora e inexoravelmente o exato perfil de cada um deles. E mesmo tardiamente são capazes até de revelar que Jorge Mello, um piauiense que por destino histórico de seu Estado foi incorporado à bancada do Ceará na apresentação coletiva, talvez seja o mais vigoroso e realmente popular de todos, embora ainda esteja apenas na humilde etapa do primeiro disco.

Se existe, o que é, o que pensa
O PESSOAL DO CEARÁ
Antonio Celso Souza e Silva

Depois da explosão baiana, que para muita gente estaria se transformando com o passar do tempo em tímido estouro de cabeça-de-negro em festa de São João modesta, um novo rojão parece elevar-se aos ares do panorama musical brasileiro e do consumo. Lançando suas primeiras faíscas em 1971, no segundo Festival de Música Universitária da TV Tupi, ganho por Na Hora do Almoço, do bigodudo Belchior, o Grupo do Ceará logo mostraria sua força num LP em que o vencedor do festival, junto com Fagner e Ednardo, apresentaria suas propostas.

Aos três, atribui-se o mérito de terem criado uma das primeiras - talvez a primeira - oportunidades para que um produto cultural nordestino em sua forma final (industrializada?) fosse consumido no atraente eixo Rio - São Paulo. Coloca-se, contudo, a questão: existe mesmo um Grupo do Ceará?
A parte a constatação óbvia de que os três nasceram no mesmo Estado e nele aferventaram no mesmo caldeirão os ingredientes que iriam constituir mais tarde as bases de seu trabalho atual, há dúvidas. Afinal, o que fazem não se liga por nenhuma característica comum, a não ser a de vender discos: 200 mil cópias do Pavão de Ednardo, 150 mil cópias da Alucinação de Belchior e os mais modestos - mas ainda significativos - 30 mil de Raimundo Fagner, - dizem as gravadoras.

O rótulo valeu, é certo, apesar dos esforços que Fagner, Belchior e Ednardo vêm fazendo atualmente para dele se livrarem, como de um carimbo incômodo que poderá atrapalhar vôos mais altos e individuais.
De tudo isso, emerge uma conclusão: os baianos são solidários na música, no sucesso e na entressafra. Os cearenses nem tanto.

 


Desenho de Dulce Oliveira

EDNARDO
"Padeiro Espiritual"


Esquecido no fundo de uma gaveta, o diploma de engenheiro químico de Ednardo serviu apenas para pontuar o fim de uma jornada, que o definiu no poeta humanista que hoje é.
Ainda estudante, trabalhou durante sete anos na Petrobrás, cumprindo horário de 23 às 7 horas da manhã quando ia pra faculdade. Durante esse tempo, ele conta, viveu ao mesmo tempo a vida de um operário "de capacete, macacão e bota" e a de estudante universitário "que no Ceará é mais elite que no Rio".
Essa experiência deu a Ednardo o caráter de sua obra para prosseguir cantando e compondo sua trilha para as paradas de sucesso do Rio e São Paulo.
- Uma vez eu tinha que cantar num clube. Arranjei um colega para me substituir no trabalho, e fui. No dia seguinte, soube que estava suspenso. Ao operário é escamoteado o pensar, o sentir. Se alguém ensaia, sofre a repressão.
Com relação à juventude do Bar do Anísio, na Beira-Mar, em Fortaleza, ele vê pontos em comum com o sentimento que criou a Padaria Espiritual, em fins do século passado e que fornecia "massa para o espírito, alimento para o povo".
Conversando sobre a Padaria Espiritual, Ednardo vai na estante e traz um livro sobre o movimento. Folheia as páginas até que aponta um trecho e recomenda: "Olha só, que barato". E lá está escrito: "Artigo 26 - São considerados, desde já, inimigos naturais dos padeiros: o clero, os alfaiates e a polícia. Nenhum padeiro deve perder a ocasião de patentear o seu desagrado a essa gente".

Falando em tom pausado e baixo, Ednardo é uma pessoa equilibrada. Esta característica transparece claramente no seu último disco O Azul e o Encarnado: o bem e o mal, o pobre e o rico, os dois pesos e uma medida.
Seu primeiro LP, O Romance do Pavão Mysteriozo, foi gravado em 73, lançado no ano seguinte e só apareceu em 76 na trilha de uma novela da Globo. Até esse tempo, quando Pavão vendeu 200 mil cópias, Ednardo ficou "dando um tempo" virando as folhas do calendário, impaciente na vontade de furar o bloqueio do mercado de discos do Rio e São Paulo.
Chegou o tempo, porém, da decisão, e Ednardo lança seu segundo LP, Berro, que a música do mesmo nome explica: "Do boi só se perde o berro / E é justamente o que eu vim apresentar". A idéia de vir para o Sul é antiga, forte o bastante para superar a nostalgia de voltar ao Ceará - "Amanhã se der o carneiro / Vou m'embora daqui pro Rio de Janeiro / As coisas vem de lá / eu mesmo vou buscar / e vou voltar em vídeos-tapes e revistas supercoloridas / pra menina meio distraída repetir a minha voz".

Agora, Ednardo já fez o que queria, veio e voltou a cores e preto e branco, e atualmente enfrenta os problemas do convívio com o sucesso.
-Antigamente o artista era amparado pela burguesia, pelos reis, pelos nobres. Hoje o sistema criou outro tipo de envolvimento que é a transação do capital. E, às vezes, se não tomar cuidado, você vende a alma. Daí ser preciso estar sempre atento e reformulando seu posicionamento perante a vida. Acho que esse sentido de autopreservação é um espírito que você deve ter a todo instante. Não posso nem devo encarar as multinacionais de peito aberto.

"Pessoal do Ceará", Ednardo chama de "rótulo" que deu a três pessoas um mesmo começo e fim, despersonalizando. Com relação a esta expectativa de rotular, tanto das empresas como do público, ele abre o jogo:
- A arte não se pode federalizar, porque aí se dá a cristalização do seu trabalho e o corte em qualquer transformação que aconteça contigo ou com o mundo. Quando isso acontece, você já foi classificado pelo público que vai passar a exigir sempre de você um discurso coerente. Acaba-se a interação.
Ednardo define, lúcido e sinceramente, seu jogo que também é O Azul e O Encarnado, puro e simples, deixando no ar, a pergunta:
- Vivemos no Terceiro Mundo. Qual é a de ser superstar?

 

BELCHIOR
"Não sou ativista"


Saída de trás dos bigodões pontilhados por dois olhos de raposa, a voz de Belchior é inconfundível: o tom arrastado, carregado de sotaque nordestino é o mesmo, seja cantando ou falando. Foi exatamente por este tom e também pelas longas e caudalosas letras, que já houve quem chamasse Belchior de "o Bob Dylan brasileiro".
Trazendo até no nome - Antonio Carlos Gomes - a marca de uma cultura humanista, Belchior é uma pessoa lida, com grande influência das obras clássicas da literatura ocidental.

Com o maior peso de suas músicas apoiado nas letras, Belchior coloca através de sua ótica o cotidiano do homem na sociedade, seu dia-a-dia, suas verdades "nuas e cruas" de tal forma que hoje, seja na feira de São Cristóvão ou nas vitrolas de Ipanema, Belchior é ouvido ao por 150 mil pessoas que compraram seu disco Alucinação.
As letras de Belchior, pontuadas por observações e julgamentos sobre os dias de hoje, instigam a pergunta: O que você pretende com sua música? Ao que ele responde:
-Meu diálogo é direto com o povo. Eu vou logo direto ao assunto, a partir de minha liberdade de opinião. O importante é que o artista diga o que pensa no seu trabalho.
Belchior se expressa muito bem. Cita nomes, conta casos, ilustra, rebusca. Não admite que se interprete o que diz de uma maneira que não seja exatamente aquilo que ele quer entendido. Foi assim que que a conversa assumiu um tom tenso, onde Belchior falava e repetia de maneiras diferentes para deixar bem claro aquilo que nem ele, talvez, visse muito claramente.
Belchior define arte como ofício de pensar o mundo, oferecer elementos novos para o conhecimento, para os envolvimentos corpóreos, para o entendimento da realidade. Não vê como poderia desvincular sua arte da filosofia do seu tempo. Ele acha a arte atemporal, solta no tempo, como uma forma evasiva de expressão, uma forma de fuga, para a qual, ele diz, não tem a menor vocação.
- Eu não faria uma arte fora do meu tempo, nem que o preconceito que isso gerasse fosse muito interessante. Seria muito conveniente fazer arte dentro dos limites de certos preconceitos intelectuais, emocionais, comerciais. O meu compromisso é com o humano. Não me acho um esteta. Acho a vida muito mais interessante que a arte.

Até que ponto você acha seu trabalho capaz de modificar nossa realidade?
- Eu acho que a música não modifica nada. Não foi a Marselhesa que fez a Revolução Francesa. Como criador de canções, sei que não tenho poder de mudar nada. Eu não sou um ativista, de forma que não espero do meu trabalho efeitos morais. Se eu estivesse a fim de mudar alguma coisa, estaria me candidatando a senador pelo MDB. Música revolucionária não vira o jogo. O artista está lá no campo, jogando a bola, e o resto do pessoal está lá na geral. E se formos ver no plano econômico, o artista também está na geral e o máximo que ele pode fazer é berrar.

Belchior acabou de gravar agora seu último disco. Do começo ao fim o LP foi cuidado e assessorado a ponto de ter se transformado numa das mais caras produções fonográficas dos últimos tempos. Com todo esse apoio, em que termos estariam as relações de Belchior com a gravadora?
- Coloquemos essa resposta do ponto-de-vista teórico. - Não há diálogo possível entre a arte e o poder. A partir disso, tudo é concessão. Eu quero, então, fazer desta contradição uma oportunidade criativa. A empresa só sabe uma coisa: ganhar dinheiro.
É um pensamento linear, horizontal, curto, unívoco. Já eu tenho o pensamento caótico, criativo, desordenado, que pensa em diversos níveis. Daí tiro minha certeza e não cedo. Não cedo porque me acho mais inteligente que a empresa, que por sua vez cede por ver que a minha inteligência dá dinheiro a ela.

 

FAGNER
"Está jóia, campeão"


Raimundo Fagner é um fenômeno do qual ainda não se pode marcar os limites. Irreverente, foi expulso de 15 colégios; resoluto, rodou por cinco gravadoras, inesperado, vem gravando discos com intervalos progressivamente menores, último lançado em abril, o próximo a ser distribuído em julho.
Em São Paulo, no quarto de hotel com Hermeto Pascoal, está no ar a presença das conversas da mixagem que estão fazendo de Orós, o novo disco.
De repente, Fagner pisca o olho e conta a loucura que foi a viagem a Paris. O último tostão na passagem, arriscou tudo e foi. Sentiu frio, medo e também orgulho das pessoas aplaudindo no Olympia. Fala da amizade com Nara e Cacá Diegues, da admiração por Roberto Carlos, do disco com Ney Matogrosso, da descoberta com Hermeto Pascoal. De noite, no estúdio, Fagner e Hermeto ficam silenciosos tirando e pondo na fita cada um dos instrumentos que cantam Cebola Cortada (Cebola Cortada - Petrúcio Maia e Clodo). O trabalho continua artesanal, até que de um canto da sala Hermeto dá um pulo e grita: "Tá jóia, campeão".

A platéia do Teatro Tereza Raquel no Rio começa a bater palmas impaciente, quando surge no palco a figura de Raimundo Fagner. As arquibancadas rangem e nada mais se ouve além da voz rachada de Fagner acompanhado por cada uma das pessoas presentes.
Enquanto canta sobre o coração que não entende o compasso do pensamento (Conflito - Petrúcio Maia e Climério), o público está eufórico. São jovens, adolescentes que há muito tempo não vibram tanto em teatro algum do Brasil. Os sintomas são muitos e os mesmos: está nascendo uma estrela.

Fagner, até que ponto você canta aquilo que sabe que se espera de você?
- Eu não estou querendo saber dessa conversa. Isso é papo de otário que está assustado comigo e com o que tenho feito. Dizem que sou astuto de carreira. E se disser que sou? E daí? O fato é que estou com o povo na minha mão e o povo sabe quem é quem. Se os meios de comunicação não sabem quem sou eu, não importa. Não quero ser promovido por altas máquinas: isso sim, é que pode acabar comigo.
Esse tom de Fagner vai nas suas músicas, na sua vida. Um desafio de querer fazer tudo conforme pensa. E se não der certo, ele diz orgulhoso "volto para Orós, e fico por lá, e pronto". O meu trabalho é uma coisa viva, está ligada ao sentimento do povo, é poesia, é amor. Não uso os artifícios criados por empresários e máquinas pra fazer ídolos ou mitos. Sei que sou um privilegiado na medida que estou sendo reconhecido sem ser através deste meios. Eu quero o rádio, a TV, mas para isso não abro mão. Eu não preciso me queimar, estou começando.
Fagner chegou ao Rio em 72, quando gravou seu primeiro disco Fru Fru Manera, esquecido nas prateleiras durante muito tempo, até que o segundo LP, Ave Noturna em 76, foi descoberto. A partir daí, começou a bola de neve na venda de discos. Raimundo Fagner de abril desse ano e Orós a sair em julho.

O que é Pessoal do Ceará?
- Essa história é morta para mim desde o começo, quando gravaram um disco com esse nome. Sempre fui contra, não há necessidade. Cada um tem uma formação, pensa diferente dos outros. Isso é papo comercial que em vez de fazer três álbuns, junta tudo num só.

Você ganhou muito dinheiro?
- Nunca tive uma boa relação com o dinheiro. Nasci pobre e hoje não quero muito dinheiro. Só um pouquinho para poder ter as coisas com gosto. Já ganhei muito dinheiro e hoje não tenho nada de novo. E se a máquina me quiser porque estou dando dinheiro, tem que me dar estrutura, porque não quero me queimar por dinheiro. E se não derem, não tem nada: acabo de gravar Orós e volto pra lá.
Esse ano ainda, Fagner vai aos Estados Unidos gravar um disco com Hermeto. Não se preocupa, em absoluto, se está lançando um disco atrás do outro: Estou querendo mostrar o que tenho e não é pouco. Meu trabalho não é esconder o ouro.