AVANÇO E RECUO

Revista VEJA - 25 de Maio de 1977
página 87 - MÚSICA
TÁRIK DE SOUZA


Os dois gumes do sucesso musical são conhecidos e inevitáveis. Ou o artista se aproveita do êxito para novas audácias - com risco do fracasso imediato - ou é convidado a repetir-se indefinidamente, para manter um público já conquistado.

Um e outro corte atingiram dois compositores de origens iguais, ligados inclusive por certo tempo ao rótulo comum de Pessoal do Ceará: Ednardo e Belchior. O primeiro ficou nacionalmente conhecido há um ano, quando sua música "Pavão Mysteriozo", gravada em 1974, serviu de trilha sonora para a novela "Saramandaia", de Dias Gomes, na TV Globo.
Belchior, também no ano passado, alcançou altas cifras de vendagens em seu LP "Alucinação", mas por uma soma de outros motivos: de um lado o êxito estrondoso de duas músicas ("Como nossos pais" e "Velha roupa colorida"), incluídas no milionário disco e show de Elis Regina, "Falso Brilhante". Por outro, sem dúvida, o denodado esforço de divulgação do próprio compositor, percorrendo quase todos os programas de rádio e TV, com seu disco debaixo do braço.

Em suma, pode-se dizer que Ednardo e Belchior acumulavam forças equivalentes quando iniciaram as gravações de seus LPs lançados agora, respectivamente, "O AZUL E O ENCARNADO" (RCA-1030201) e "CORAÇÃO SELVAGEM" (WEA-36027). Chegaram, no entanto, a resultados quase opostos, sob todos os aspectos.

 

LÚDICA TAREFA


Ednardo: agressivo e irônico


José Ednardo Soares Costa Sousa, de nome quase tão extenso quanto o de Antonio Carlos Gomes Belchior Fontenele Fernandes é um ano mais velho que ele, 31 e 30, ambos cearenses. Em "O Azul e o Encarnado" como sugere o título, a base é a "jornada das pastorinhas coloridas de fitas e pandeiros" em times oposto, num jogo folclórico difundido por todo o nordeste.

O cordão azul versus o cordão encarnado transformou-se num intricado combate dialético das vontades do homem expresso num tosco desenho do autor, num folheto interno ao disco, onde se opõe, entre outros, conhecido e desconhecido, povo e artista, pessoa e sistema desenhados sobre um corpo de homem.

Melhor que essas lúdicas e imaginosas tarefas propostas pelo compositor, na que poderia ser chamada de bula do disco, é ouvir as treze faixas resultantes, de impressionante agudeza e equilíbrio.
Ednardo alterna, com a precisão de um alquimista, agressividade e ironia. Apesar de sua reconhecida limitação como instrumentista, também o suporte musical é variado e atraente, além do vocal, que compõe um LP homogêneo, mais ousado que os anteriores "Pavão Mysteriozo" e "Berro".


OH YEAH!


Já Belchior preferiu repetir-se. Ou foi obrigado a isso, uma vez que a censura cortou sua música "Como se Fosse Pecado" considerada por ele uma espécie de chave poética do LP "Coração Selvagem".
Como se tivesse limpado as gavetas para o próximo salto, ele escolheu músicas de até dez anos atrás ("Pequeno Mapa do Tempo", "Todo Sujo de Batom", "Paralelas", "Pópulus"), mesclando-as a um repertório progressivamente mais recente ("Caso Comum de Trânsito" de 1973) ou a composições já gravadas por outros intérpretes, como "Galos Noites e Quintais" (Jair Rodrigues no ano passado).
Embora mixado no estúdio americano Kendum, o fundo sonoro é praticamente o mesmo de "Alucinação" (teclados, baixo, um pouco de gaita, guitarra e bateria estridentes), o que contribui para reforçar a pobreza melódica que assola o disco.
Mesmo nas letras, antes agressivas, os clichês descritivos amontoam-se em discursos semelhantes, como os da faixa-título: "Meu bem, o mundo inteiro está naquela estrada ali em frente/tome um refrigerante/Coma um cachorro quente".
O inconformismo parece engarrafado, a juventude, uma fórmula reduzida a poucas palavras e sempre as mesmas. Uma única ponta de audácia aparece em "Caso Comum de Trânsito", logo desaparece, porém.
Com ênfase na voz gutural sempre e deploráveis tentativas de animar os silêncios entre um compasso e outro, com interjeições ao estilo "ô yeah", o intérprete também contribui para aumentar esta sensação de déjà vu do parco universo criativo de "Coração Selvagem".
Ao que parece, Belchior, obcecado em sua procura do novo, ensurdeceu às lições do próprio "Clamor no Deserto", outra das nove faixas do LP: "Eu sei que é difícil começar tudo de novo/Mas eu quero tentar". A impressão que fica, porém, é inversa.


Belchior: mais discursos