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Jornal Diário do
Nordeste - Fortaleza / Ceará - 21 de Agosto de
2005 Dalwton Moura |
Quando a música vale a
pena
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Em entrevista ao
Caderno 3, em tom de memórias saborosas, despidas de excessiva
nostalgia, a cantora, compositora e instrumentista Tânia Cabral
reflete sobre o “Pessoal do Ceará”, três décadas depois do auge do
“grupo-movimento” que como tal nunca existiu, mas assim foi batizado
e passou à história. Ela lembra seu início na música e suas andanças
pelo País, exercendo outras atividades, mas sempre tendo a música
por perto. Salpica lembranças de Fagner, Ednardo, Belchior, Rodger
Rogério, Augusto Pontes... E festeja o lançamento de “Vale a pena”,
seu primeiro disco solo. Confira:
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TÂNIA
CABRAL registra em disco canções inéditas e uma antiga parceria com
Ednardo: arranjos e direção musical de Deusimar da Guitarra em um
disco essencialmente cearense
Tânia
Cabral do Pessoal do
Ceará
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Na esteira da
geração de músicos cearenses que ficou conhecida por Pessoal do
Ceará, forjada entre fins dos anos 60 e início dos 70, o Estado
voltou a figurar no mapa da música brasileira. Fagner, Belchior e
Ednardo romperam barreiras, forçaram a indústria fonográfica a lhes
abrir as portas e sedimentaram carreiras de abrangência nacional,
permanecendo, cada um a seu modo, como referenciais em todo o
País. Mas nem só destes três grandes intérpretes e compositores,
ou de autores consagrados como Fausto Nilo, se fez o
“Pessoal”. Muitos foram os talentos que, por diferentes motivos,
não chegaram a ser tão (re)conhecidos. A fortalezense Tânia
Cabral de Araújo é uma dessas figuras. Parceira de Ednardo no
clássico “Palmas pra dar Ibope”, Tânia chegou a ter uma canção
gravada pelo mestre Luiz Gonzaga. Em entrevista ao Caderno 3, ela
conta sua história
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“Vida pequena pra fazer tudo que faço.
Vida grande como o abraço”. Podia ser um provérbio, um aforismo, uma
filosofia de vida. É como Tânia Cabral de Araújo apresenta
sinteticamente o espírito do disco atualmente em lançamento,
registrando 15 faixas de sua autoria, mais de três décadas depois da
chegança do “Pessoal do Ceará” ao “Sul” de sorte e sedução. Uma
viagem após a qual alguns se tornaram famosos, outros permaneceram
como referenciais para o público mais atento, outros ainda se
mantiveram discretos, quase que às sombras. Mas sem deixar de
exercitar o talento e o amor pela música.
Tânia Cabral é uma
das figuras do “Pessoal” cuja história ainda precisa ser devidamente
contada. Amante dos sons e das palavras desde os primeiros tempos,
ela se “atrasou” para integrar a turma que, em fins dos anos 60,
movimentava com música o ambiente universitário em Fortaleza. Das
noitadas entre a faculdade e espaços como o Bar do Anísio e o Velho
Estoril sairiam os responsáveis por colocar o Ceará de Humberto
Teixeira e Lauro Maia mais uma vez no mapa da música popular
brasileira. Tânia morava em Minas Gerais e, uma vez formada em
Economia Doméstica, mudou-se para o Amazonas. Mas veio passar férias
em Fortaleza e aproveitou para participar de um festival - no qual,
revela em entrevista, só se inscreveu por insistência de uma
irmã.
Daí veio sua aproximação com a turma como um todo, do
ponto de vista da amizade, e com Ednardo, pelo lado musical. Vieram
canções como “Palmas pra dar Ibope”, registrada no famoso LP “Meu
corpo, minha embalagem, todo gasto na viagem”, de 1973, que reuniu
Ednardo, Téti e Rodger Rogério. E “Boca de forno”, que se destacara
no festival e, tempos depois, seria gravada por ninguém menos que o
rei Luiz Gonzaga.
Entre novas mudanças de cidade, Tânia conta
que não chegou a acompanhar o passo dos mais afoitos na busca pelo
sucesso. Preferiu se manter trabalhando em outras atividades, mas,
em março de 1979, estava em terras alencarinas para dar seu recado
na “Massafeira”, encontro de gerações e fazeres artísticos cujos
efeitos seguem ecoando. Desde então, Tânia continuou mantendo a
habitual discrição, mas nunca parou de compor. Agora, reuniu
esforços e canções para produzir o CD “Vale a pena”, que tem
lançamento marcado para o próximo dia 16 de setembro, na ADUFC, mas
já pode ser encontrado em lojas como a Desafinado. Com a garra
necessária a todo artista independente e sob as bênçãos de Ednardo,
Tânia finalmente deságua canções recentes, como “Ciranda de Viçosa”,
e antigas, como “Rendados”, a quatro mãos com o autor de
“Beira-mar”. Registra ainda sua parceria com Ieda de Abreu em
“Ideário” e uma contribuição de Stélio Valle e Lázaro Gonçalves,
“Asa de bom querubim”. Vai do “Bolero” com trechos em espanhol ao
“Bê-a-bá, bagagem”, que parece resumir o espírito do disco e de sua
autora: “tudo é parte da viagem / Bê-a-bá, bagagem / forma, som,
canção”. De Tânia, agora, para o Ceará ouvir.
PALMAS PRA DAR
IBOPE
(Ednardo e Tânia Cabral de
Araújo)
Palmas pra dar
Ibope
Palmas pra dar
Ibope
Palmas pra dar
Ibope
Bate, bate, bate,
bate
O desassossego ronda nossa
aldeia
As nuvens
cativas
E canções
radioativas
O desassossego ronda nossa
aldeia
Orações e a teia de súbitas
virtudes
Céus, celuloses, celulites
tropicais
As elites e os
demais
Rondam nossa
aldeia
Sons, megatons de uns versos
obscenos
A vingança e o veneno rondam nossa
aldeia
Mas tanto faz
Dalwton Moura
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Caderno 3 — De que modo e em que contexto se
deu essa retomada do seu fazer musical, com a produção desse
CD?
Tânia Cabral— Isso tem um pouco a
ver com o Festival de Música na Ibiapaba (promovido pela Secult no
último mês de julho). O festival é uma coisa linda. Vou ficar de
bengala indo ao festival (risos)... Fui lá ano passado, no primeiro
ano, e era aquele ambiente estudantil mesmo. Este ano fui de novo.
Mas quando voltei do festival do ano passado disse a mim mesma:
“Vamos trabalhar”. Esse tempo todo eu meio que me engavetei, porque
acho que realmente não tava convencida de que valia a pena investir
nesse trabalho. O “Vale a pena” foi pra resgatar um pouco disso, um
pouco de mim, do Ednardo, da geração do Pessoal do Ceará, que fez
tanta música boa. Passei anos e anos aí, e nunca deixei de fazer
música. Mas fazia mais “em off”, brincava com todo mundo, dizendo
que tinha música pra gente de 20 anos, pra gente de 30, 40, 50... E
tenho minha peça também. Mas no festival, como tava aquele clima bem
de todo mundo ser estudante, fiquei mostrando minhas musicas pro
pessoal da cidade. E aquilo me deu uma satisfação tão grande, que há
muito tempo eu não sentia. A receptividade deles lá em Viçosa me fez
ficar surpresa com a minha própria desenvoltura. Então resolvi
reunir essas coisas, vi que eu ainda tinha algo a dizer. Voltei com
aquela disposição de trabalhar.
—
Vamos, então, voltar no tempo umas quatro décadas. Como foi o início
do seu contato com a música? E quando você sentiu que ela teria uma
presença mais forte na sua
vida?
Tânia— Sempre fui ligada à
música. Tem até uma história familiar, que falam que quando eu era
criança negociei a chupeta por uma caixinha de música. Foi meu
primeiro negócio (risos)... Meu pai contava que eu já tinha mais de
4 anos e ainda usava chupeta, até que meu pai negociou, e eu aceitei
trocar pela caixinha de música. Até hoje sou apaixonada por negócio
de caixinha de música. Mas estudei piano com dona Maria Helena
Barreto, esposa do Zenon Barreto, artista plástico. E era sempre
aquela batalha, porque eu não tinha piano em casa. Depois, na época
que tava já participando aqui de festival, foi que conheci as
pessoas, Ednardo, Rodger Rogério, Petrúcio Maia... Eles iam tocar
piano na minha casa, na Gonçalves Ledo, perto do Mercado dos
Pinhões. Mas eu só fui tomar contato com aquela turma um pouco mais
tarde.
— Por
quê?
Tânia— Porque eu não fiz curso
universitário aqui. Muitos desses amigos, de vinte e poucos anos,
que eu deveria ter feito amizade na época de faculdade, eu conheci
mais através da minha irmã. Porque eu fui morar em Minas, tranquei o
curso de Serviço Social pra ir fazer Economia Doméstica em Minas.
Como não podia levar o piano nem, nada, morava lá em residência
universitária, ganhei dos meus pais um violão. Aí foi quando eu
realmente comecei a fazer música. Sempre gostei de fazer música,
começando de brincadeira, né, com aquelas paródias dos colégios. O
próprio Fausto Nilo diz que começou a ser letrista fazendo
paródia.
— E quando é que você
retorna a Fortaleza, se encontra com aquela geração de
compositores?
Tânia— Foi por ocasião
do I Festival Nordestino, de 1969. Aqui em Fortaleza já tinha saído
o LP do Festival da Assunção, aquela coisa muito boa, e eu não
conhecia ainda. Naquela época tinha acabado de concluir o curso em
Minas, e tinha ido trabalhar, veja você que eu rodei o Brasil, no
Amazonas. Quando teve esse festival aqui, acho que foi minha irmã
mais velha que me pediu as gravações e inscreveu. E minhas músicas
foram aceitas (para o festival). Aí foi que eu conheci todo esse
pessoal, no I Festival Nordestino, um ano depois do
AI-5.
— Você chegou a participar
mais ativamente do movimento
estudantil?
Tânia— Eu sempre militei
no movimento, mas não tinha uma filiação, assim, nem à Ação Popular,
nem ao PC do B, nem a nenhum grupo. Mas participava do meu diretório
acadêmico na universidade, lá em Minas, e quase que eu ia ao
congresso de Ibiúna, escapei por pouco. Teve vários amigos aqui que
eu conhecia, o pessoal que militava por aqui, que foram. Mas acho
que era minha mãe rezando muito... Acabei não indo, aconteceu alguma
coisa que eu não fui. Acho que porque 68 era o ano que eu ia me
graduar, aí não fui. Mas, apesar do tempo ser de muita repressão e
tudo, ainda havia aquela expectativa que as coisas podiam mudar, que
você tinha que mudar.
— Voltando
ao festival, como foi o clima, a convivência entre os compositores?
E como é que as suas músicas se
saíram?
Tânia— Bem, como eu falei, o
Ednardo, a Téti, o Rodger, todo esse pessoal eu conheci na época
daquele festival, que aconteceu aqui no Náutico. E o Ednardo e
outras pessoas me falavam que era pra eu cantar, mas eu me
acovardei, mesmo tendo três músicas classificadas para aquele
festival: “Encontro marcado”, “Tempo vento” e “Boca de forno”, que
mais tarde foi gravada pelo Luiz Gonzaga. Não tive coragem de
apresentar nenhuma. Então fui chamando outras pessoas. Uma das
músicas foi cantada pelo Ray Miranda, cunhado do Rodger. O Ray tava
cantando uma música do Rodger, “Bye-bye baião”, aí pegou uma minha,
“Encontro marcado”, e foi no embalo. Nesse festival, que
classificava para uma etapa final em Recife, “Boca de forno” foi o
primeiro lugar aqui. E foi pra Recife, junto com umas três outras
músicas aqui, que acabaram sendo gravadas num disco coletivo do
festival, lá em Recife. Foi muito importante isso, pra nós, porque
naquela época era muito difícil você conseguir chegar a gravar
alguma música sua. Lá em Recife, acho que a música do Rodger acabou
até sendo mais bem classificada. Mas, pra mim, foi incrível, porque
eu morava em Tefé, no Alto Solimões, e vim pra cá passar férias e
participar do festival. Me lembro tanto eu encabulada com aquela
coisa, e o Augusto Borges fazendo a apresentação do festival, me
chamando de “a professorinha de Tefé”.
— Depois disso, você passou a se dedicar mais à
música, ou continuou priorizando outras atividades
profissionais?
Tânia— Eu continuei
viajando, morando em lugares diferentes. Depois de morar em
Barbacena, fui para São Paulo, fazer pós-graduação. Lá em São Paulo
reencontrei esse pessoal nos anos 70. Eu já tava vinculada à UFC
aqui, tinha conseguido bolsa da Capes e tava fazendo mestrado na
Escola de Saúde Pública, em SP. Lembro que o Ednardo morava num
sobradinho em São Paulo. Eu ia pras minhas aulas e na volta passava
na casa dele. A gente se lembra até hoje das figuras que apareciam
por lá. Mas você perguntou sobre a música. Na época da primeira
gravação, de “Palmas pra dar Ibope” (no antológico LP “Meu corpo,
minha embalagem, todo gasto na viagem, com Rodger, Téti e Ednardo,
em 1973, o disco fundamental do chamado “Pessoal do Ceará”), eu
morava ainda em Barbacena. Acompanhei de lá o sucesso que o Ednardo
e os outros foram fazendo em São Paulo, até que, um pouco mais
tarde, fui morar lá e voltei a conviver com
eles.
— O Ednardo foi seu
principal parceiro. Como se deu essa aproximação entre
vocês?
Tânia— Na verdade, eu me
aproximei muito não só dele, como do Rodger, da Téti, do Augusto
Pontes, do Ricardo Bezerra... Quando voltei de férias do Amazonas,
encontrei todo o pessoal aqui, tinha aquelas noitadas, rodas de
violão, todo mundo com aquele apetite pra tocar, o que eu acho
maravilhoso. Não sei se isso acontece com as gerações mais novas,
deve até acontecer. Mas eu achava maravilhoso. Augusto Pontes era um
dos principais, sempre foi muito irônico, gozava da música dos
outros, botava apelido. As reuniões aconteciam no Bar do Anísio, que
ficava na Beira-Mar, e no Estoril, que era meio decadente antes de
ser tombado. Mas lá a gente ficava à vontade. O Fagner, o Cirino,
eram fominhas, pegavam o violão e não davam pra mais ninguém. Entre
nós, amigos ali, a gente tinha coragem de mostrar as músicas que
fazia. Mas o Ednardo foi mais receptivo em termos de trabalhar, de
tentar parcerias. A maior parte das vezes eu entreguei letras, e ele
me aparecia já com as canções prontas, músicas maravilhosas, eu
gosto demais das músicas que ele fez. A gente se encontrou mais,
passou a ter mais contato, por causa disso, das parcerias. “De areia
e vento”, que continua inédita, foi nossa primeira parceria. E
“Rendados”, essa que eu gravei agora, eu tive que procurar, resgatar
de um K-7 antigo, uma fita do início dos anos 70, que
sobreviveu.
— E “Palmas pra dar
Ibope”, cuja letra é tão visionária, profética, como
surgiu?
Tânia— “Palmas pra dar Ibope”
é da fase de Fortaleza ainda. Foi um pressentimento aquilo. Fiz uma
gozação e acabou acontecendo tudo. Pegamos uma linguagem que tinha
certa tradição e colocamos uma informação, uma leitura atual,
moderna. Sempre tive nos meus escritos essa liberdade de jogar
informação. E sempre cuidei de deixar o espaço do ouvinte, porque
acho que o ouvinte precisa ter o espaço dele, a audição tem que ser
criativa também. Ele dá interpretação, circula ali pra dar a
informação... A música não pode ser tão fechadinha, tão linear. Em
“Rendados”, outra parceria minha com Ednardo, eu já vou mais
descrevendo. Mas a música tem que deixar uma margem de surpresa pra
você. Como em “Palmas pra dar Ibope”, acredito que a nossa aldeia
continua desassossegada. Mais ainda hoje em dia, porque agora é
aldeia global mesmo. Acho que essa foi minha música mais conhecida.
Depois o Ednardo gravou “Varais”, em outro disco, uma música que eu
particularmente até gosto mais, mas “Palmas pra dar Ibope” foi a que
chegou a mais pessoas.
— A partir
daí você passou a se dedicar a outras atividades profissionais, mas,
mais tarde, apareceu novamente em 1979, na Massafeira Livre. Que
lembranças você guarda daquele período de agitação cultural, que
revelou tantos talentos e ficou marcado até
hoje?
Tânia— Ah, da Massafeira eu
lembro muito daquela briga toda, porque todo mundo queria se
apresentar. Parecia até o Bar do Anísio, com aquela briga por uma
brechinha. Pra Massafeira eu fiz um visual pra ironizar com aqueles
cartazes de procurados pela repressão. Fiz uma música falando de
crianças como elementos de alta periculosidade, porque jogavam bila,
corriam... E na hora da apresentação, naquele palco cheio de gente,
não tinha mais espaço pra nada. Lembro que o Dilmar (Miranda,
sociólogo e pesquisador de música) fazia parte do grupo que tava
começando a organizar a CUT aqui. Ele queria um espaço pra fazer um
protesto. O pessoal empurrou e, como ele era meu amigo, ele acabou
usando parte do meu espaço pra fazer esse protesto, em prol da CUT
aqui. Então eu participei com só uma música, “O Rei”, em vez de
duas.
— Olhando de hoje, você se
arrepende de não ter feito mais para levar adiante uma carreira na
música? Como naquele momento positivo do início dos anos 70, ou
mesmo quando da Massafeira?
Tânia— Eu
não sei se me arrependo. Fico pensando que os momentos decisivos não
foram nem propriamente estes. Acho que foi mais quando eu estava no
Rio, em 71, e veio a notícia que o Luiz Gonzaga ia gravar “Boca de
forno”. Por conta da música, o Luiz Gonzaga chegou a se mostrar
disposto a me levar pra gravadora, de me apresentar ao pessoal e
tentar fazer com que eu tivesse um contrato. Naquela época era uma
oportunidade de ouro, isso, porque não se tinha essa facilidade
tecnológica que se tem hoje. O músico dependia realmente de uma
gravadora, o que por um lado era muito difícil de chegar, mas era
mais fácil, uma vez contratado, fazer com que seu trabalho chegasse
às pessoas. Hoje você faz um disco e não consegue mostrar, é uma
verdadeira tática de guerrilha pra ir furando o cerco. Mas eu acabei
recusando esse convite do Luiz Gonzaga. Porque ele era já enquadrado
pra fazer aquele estilo de música, e eu não tinha nem produção nem
vontade de enveredar pela música nordestina com aquela
característica do Luiz Gonzaga. Era natural pra ele, mas pra mim
não. Esse foi o momento em que eu decidi batalhar minha vida
profissional de outra maneira, embora a música tenha continuado
sempre presente, mas não foi o meu meio de
sobrevivência.
— Você se julga
esquecida pelos que fizeram o Pessoal do
Ceará?
Tânia— Eu sou praticamente
inexistente. A única exceção que se faz aí é o próprio Ednardo, que
sempre que dá entrevista cita muitas pessoas que não ficaram na
mídia, mas que ele sempre lembra. Mas Ednardo é uma exceção. É
como se eu não existisse. Acho que houve uma fase que talvez eu
pudesse me ressentir disso, dessa exclusão, mas foi uma fase.
Pensava em por que esqueceram de mim. Mas acho que com a maturidade,
com aquela coisa de você se desvincular de certas coisas e chegar à
essência das coisas, vejo hoje esse esquecimento como uma
conseqüência natural do fato de que eu não estava em contato com
esse pessoal. Como é que eu podia aspirar estar sendo lembrada, se
eu mesmo não estava me fazendo lembrar? Depois, quando vi a
facilidade de se fazer um CD com qualidade, como temos agora, é que
resolvi: bom, agora pelo menos eu posso fazer alguma
coisa.
— No seu entendimento, por
que, apesar de haver outros grandes talentos naquela geração,
somente Ednardo, Belchior e Fagner chegaram a se tornar mais
conhecidos nacionalmente?
Tânia— Acho
que é mais porque eles chegaram lá, pela qualidade deles e também
por uma opção de persistência. Vejo muito isso como uma qualidade,
porque, olhe, é preciso ter muita persistência nesse ramo. A
dificuldade que esse pessoal enfrentou e ainda enfrenta hoje, pra se
manter, é muito grande. Tem gente que olha de fora e pensa que tudo
é festa. Mas pra conseguir esse espaço o camarada batalha, abre mão
de muita coisa da vida pessoal. E eu acho que eu não tinha essa
garra, de abrir mão de tudo pra me dedicar a isso. Talvez não
estivesse convicta, não achava que valesse a pena. Acho que eles se
destacaram por isso, embora Fagner, Belchior e Ednardo não tenham
uma qualidade musical superior, por exemplo, à do Rodger Rogério, ou
à de outras gerações de músicos daqui de Fortaleza, que eu lamento
da nossa própria gente nem conhecer. Então, pra chegar lá, além do
talento, tiveram essa qualidade da persistência, tiveram muito claro
que eles queriam aquilo ali.
—
Como era a convivência entre essa turma, quando as barreiras foram
caindo e o sucesso começou a
chegar?
Tânia— Eu não acompanhei
tanto. Por me deslocar muito, morei em cinco estados nos meus
primeiros cinco anos de formada, então meus contatos eram muito
pontuais. Quem eu tinha mais aproximação era o Ednardo. Belchior eu
conheci na época daquele festival, embora ele não tenha classificado
nenhuma música, mas o conheci por conta das amizades da Faculdade de
Medicina. Depois eles foram pra São Paulo e começaram a encontrar
esse espaço. Eu sei que havia um certo mal-estar às vezes, não das
pessoas, como ciumeira, nem nada, mas como comentários de alguém que
forçava um pouco mais a barra, ia mais lá na frente. O que sempre
foi mais entrão mesmo foi o Fagner, que coincidentemente foi das
pessoas que eu convivi menos. Ele era o mais novo da turma, bem
menino véi mesmo, como a gente falava.
— Em algum momento, você se sentiu prejudicada? Acha
que se tivesse sido ajudada, a história poderia ter sido diferente
pra você?
Tânia— Acho que, se eu
tivesse buscado essa ajuda, eu teria obtido. Pode ser ingenuidade da
minha parte, mas tenho impressão que sim. As pessoas são tão
calorosas comigo, o Ednardo mesmo, agora fazia anos que eu não
encontrava. Eu tava muito sem graça de procurar por ele, mas
precisei pedir licença pra gravar nossa parceria. E foi tão
engraçado! Eu tava em casa quebrando a cabeça, ensaiando como chegar
nele. Aí um dia toca o telefone, era ele. E eu: “Como é que você
adivinhou que eu queria falar com você?”. E foi aquele papo muito
carinhoso. Então, hoje vejo isso com muita autocrítica: se eu tava
esquecida, é porque eu mesmo fomentei, eu mesmo me deixei
esquecer.
— Falando do futuro,
então, que expectativa você tem para esse novo
disco?
Tânia— Eu tenho expectativa,
mas não tenho ilusões. Uma das coisas que acho que aconteceram com
esse CD, depois dessa experiência inspiradora que eu falei, lá em
Viçosa, eu tenho consciência que esse trabalho tem qualidade, que é
uma coisa muito boa. Sempre fui muito insegura com isso, até com a
condição pra interpretar. Mas agora tenho a segurança que fiz um
trabalho caprichado. Não quer dizer que possa agradar a todo mundo,
nem nada, o que é normal, porque são gostos diferenciados. Mas não
tenho ilusões sobre essa segunda etapa. Não há garantia de romper
essa barreira que tá aí, mas não quero deixar de ter expectativa. A
expectativa é que as pessoas se dispunham a ouvir, e aqui acolá uma
pessoa cante comigo. Eu já me sinto recompensada.
Dalwton
Moura
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Tânia e as mulheres do “Pessoal”
A convite do Caderno 3, o
cantor e compositor Ednardo fala sobre a parceira e amiga Tânia
Cabral. Esbanjando referências à sensibilidade de Tânia como
compositora, o autor de “Terral” festeja a Tânia intérprete do disco
“Vale a pena”. E clama para que sejam prestados os devidos
tributos às mulheres que fizeram o “Pessoal do Ceará” |
TÂNIA
CABRAL ressalta a espontaneidade que marcou os tempos embrionários
do que viria a ser o “Pessoal”: “Tinha aquelas noitadas, rodas de
violão, todo mundo com aquele apetite pra tocar. Eu achava
maravilhoso”
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Do que se fala do Pessoal do Ceará, e
de nossas músicas, existem lacunas de registros das compositoras e
autoras que também fazem parte e que sempre estiveram e estão juntas
ao nosso caminho. Gostaria que notassem que nosso “Pessoal” tem
mulheres também, como Alba Paiva, Olga Paiva, Ieda Estergilda de
Abreu, Marly Vasconcelos, Téti, Xica, Dodora Guimarães e
outras. Aliás, sem elas seria difícil articularmos tudo que
realizamos até então.
Do mesmo modo, Tânia Cabral vem, desde
os tempos iniciais do Pessoal do Ceará, realizando grande quantidade
de músicas. Sei de sua competência artística, tenho privilégio de
ser parceiro em algumas músicas das letras de Tânia, e também estou
à vontade para falar sobre este disco, pois quase todas as obras são
de sua única autoria. Ao escutar “Vale a Pena”, percebo a
importância de sua visão estética e artística.
Querida amiga
e parceira dos primeiros tempos, Tânia foi uma das primeiras
mulheres do Pessoal do Ceará a ter coragem de falar com voz própria
e cantar poesias e músicas no tempo de exceção, principalmente em
nossa terra, colocando delicadeza em cada verso e música, próprios
às suas criações.
Tânia, letrista intuitiva premedita a
música via ótica feminina, o que é raro na música brasileira. De
nossa boa turma do Pessoal do Ceará, suas letras densas e/ou leves,
de tal élan, são viagens detalhadas na crônica cotidiana e mostram
uma visão transcendental.
Sou fã e parceiro da Tânia, de sua
preciosa visão cinematográfica sobre as coisas e pessoas, de seu bom
humor, de sua fina ironia saudável, de sua acuidade e de seus
cuidados aos momentos musicais que passeiam com desenvoltura por
várias nuances da música brasileira, desde bossa nova com seu
próprio sotaque dos esteios nordestinos, até cirandas, baiões,
boleros, xotes, valsas, chorinhos & sambas, entre outras canções
tão próprias à nossa brasilidade.
Tenho algumas parcerias com
Tânia, pedras de responsa, citando algumas: “Rendados”, “Palmas pra
dar Ibope”, “Varal”, além da inédita “De areia e vento” e
outras.
Sempre falei pra Tânia gravar suas músicas. Ela tinha
reservas quanto a sua voz, e preferia que outros interpretassem.
Continuei insistindo, e foi grande vitória conseguir sua
interpretação no álbum da Massafeira, ela cantando “O rei”, de sua
autoria. Portanto, é com alegria que vejo sua iniciativa de gravar
este disco, “Vale a Pena”.
Tânia é essencial, é forma, som,
canção, bê-a-bá bagagem. Escute, viaje nos sons e palavras
construídos sem pretensões, mas generosamente nos dando a conhecer
um pouco de nós e dela. Tânia chega de mansinho, como quem não quer
nada, e mostra tudo.
Ednardo especial para o Caderno
3
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