Através da poeira ver

Fonte: www.nelsons.com.br 
Fortaleza, Ceará - 24/10/2004

Sons de 30 anos do LP Pessoal do Ceará

Valdo Siqueira

Completou 30 anos em 2004 o registro fonográfico número um do cearense Ednardo no acetato. Originalmente saído pela gravadora Continental, agora com relançamento em digital, na realidade, "Ednardo e o Pessoal do Ceará” é um disco de três: Ednardo e o casal de conterrâneos Tetty e Rodger Rogério.

A capa, os títulos que mudaram com o tempo, os arranjos orquestrais e as originalidade e simplicidade, abissais, tudo espelhava muito a atitude desprendida dos três que, conta-se, atravessaram o País rodando numa Kombi velha, espalhados entre instrumentos e músicos, a fim de enfrentar o frio dos estúdios de gravação paulistas.

Idealismo e loucura. O suntuoso bilro na capa que se abria em álbum anunciava logo o bom gosto artesanal e a dedicação dos novíssimos artistas, acrescentando-se aí a peculiar e típica forma relacional do cearense que buscava mostrar-se no Sudeste, sem saber se dele receberia a mesma acolhida, própria do povo de Alencar. Além, o sugestivo e quilométrico título original “Meu corpo, minha embalagem, todo gasto na viagem” já compartilhava as experiências com o ouvinte antes mesmo de ouvir-lhes.
Fotos pequenas dos três, ainda muito meninos, e as letras, tudo muito caprichado, num verdadeiro e tear pacto com sua terra, seus valores, suas raízes, alternativa à nova existência na música brasileira dos borbulhantes anos 70.

Aliás, à audição menos contida se percebe de cara que o disco é impregnado de lembranças e recortes do Ceará, fazendo pensar que o segundo título aplicado à obra, Ednardo e o Pessoal do Ceará, estava realmente muito bem encaixado ali, embora depois tenha-se sugerido que o “pessoal” já incorpora toda a leva que deslocava-se isoladamente, como Fagner, Belchior, Cirino, Jorge Mello (este piauiense), Fausto Nilo, Manassés, etc.

Na contingência radical dos governos militares dos anos 70 e na esteira de lembranças da turma da rua Artur Temóteo, da formatura em Química na UFC, do colégio do velho pai e dos parceiros que daqui nunca saíram, Ednardo foi formar uma personalidade muitíssimo forte dentro daquele cenário novo e às vezes insípido da fama.
Exprimindo-se coerente com a influência intelectual (como a Augusto Pontes e Brandão, por exemplo), buscava ultrapassar a limitação espacial dos que prendiam-se à terra natal ou voltavam frustrados das experiências mal sucedidas nas gravadoras (que só existiam no Sudeste), tentando superar os vagidos tão comuns nos artistas até mesmo de hoje. Esse álbum reflete muito bem tudo isso.

Rodger é físico, Ednardo, químico.  Ednardo estava ocupado com o casal, mas fazia reagir bem as suas porções compositor e intérprete. Exprimia com sua ordem pós juvenil o caráter de aproximação de sua música com as raízes populares, com o canto da rua, conhecendo logo a identificação com o público de seu lugar. Aqui, numa reação muito espontânea de receptividade de público, desde sempre ele foi atestado e aprovado, cantando muito perto do que era bom de ouvir, até virar referência a outros tantos, mais à frente.

Embebido em múltiplas referências populares, o disco tem o toque marcante e impetuoso do violão de Ednardo, além da voz suave quase adolescente desse autor. Nos faz pensar que à época compunha essencialmente ao violão, o que viria a mudar na entrada dos anos 80, passando ao Rhodes.
O maracatu cearense, ritmo presente em praticamente toda a obra dele, está em “Terral” (“Aldeia, aldeota, estou batendo na porta pra lhe aperrear...”), uma espécie de hino pop dos que habitam sua cidade. Em “Ingazeiras”, uma caprichosa orquestração onde os violinos entram como que imitassem o canto das cigarras, Ednardo desfia suas cordas com arrebatamento lírico, tanto quanto em “Beira Mar”, que também tem sensível backing de Teti (à época, Tetty). As vozes, aliás, estão muito afinadas nos dois, o que o timbre e a enorme limitação técnica de Rodger Rogério não favorece ocorrer. Ele comparece fundamental nas composições, sobretudo com Dedé, mas também com Augusto Pontes, cabeça proeminente na carreira de Ednardo, responsável por um dos melhores momentos do long play, em “A Mala”, interessante e angustiante canção, assemelhada a “Na Hora do Almoço” de Belchior e também “Águas de Março” de Jobim. “Palmas pra dar Ibope” parecia preconizar o que deveria extrapolar as possibilidades da obra, numa parceria de Ednardo e Tânia Araújo.

O certo é que Rodger, Tetty e Ednardo dialogavam bem, o que não significa que se tenha levado a cabo em experiências posteriores, quando jamais estiveram juntos de novo em disco, podendo estar um fora do arco de influências do outro ou ínsito nele. A palavra à qual estavam intimamente relacionados os três era “intenção”, difícil nos tempos de admoestações oficiais e censuras às novas formulações que reagissem ao preestabelecido, político e artístico, sofrer como Caetano e Gil. A ela cumpria estar atento.

Em ontológica oposição ao imediatismo das gravadoras, Ednardo teve que esperar uns bons cinco anos até conhecer a fama fora de seu lugar (quando serviu de tema de abertura da novela Saramandaia), o que não ocorreu com os outros que, apesar de experiências fonográficas outras, limitaram-se em alcance.
Ednardo nunca abriu mão da liberdade conceitual, sempre esteve atrelado a um conteúdo muito próprio, característico, compondo trilhas para filmes e discos belíssimos, o que fez tornar sua música realmente muito auto-referente neste plano, e merece sempre crítica por parte daqueles analistas da grande mídia, ou seja, dizem que a imagem que o artista construiu de si mesmo tem traços avassaladores de individualismo.

Esse é um contraponto, aliás, porque num desses abismos dialéticos vêm precipitar-se sempre um ou outro artista meio desvanecido de si mesmo, que considera-se incompreendido do todo, etc e tal. Isso complica tudo na carreira de Ednardo, posto que, encontra ainda ele, grande identidade popular em suas canções e tem público fiel, shows o ano todo.
Esta de compartir, dialogar com o grande público, a interlocução fluida, é uma constante aqui nesse tempo de “Meu corpo, minha embalagem, todo gasto na viagem”, réplica perfeita dos tempos impróprios para as paradas (de sucessos, inclusive), as estagnações, o fim.
Que engendrem isso e não confundam com poder. É viajar de Kombi e ver a poeira subir.


Valdo Siqueira

 Produz e apresenta com José Lemenhe e Henílton Menezes o “Programa de Jazz” na Universitária FM.
 Curador do Festival Jazz e Blues de Guaramiranga.
 Videomaker, professor de cinema e vídeo e estudante de Filosofia da UECE.