Valdo
Siqueira
Completou 30 anos em 2004 o registro fonográfico
número um do cearense Ednardo no acetato. Originalmente saído pela
gravadora Continental, agora com relançamento em digital, na
realidade, "Ednardo e o Pessoal do Ceará” é um disco de três:
Ednardo e o casal de conterrâneos Tetty e Rodger Rogério.
A
capa, os títulos que mudaram com o tempo, os arranjos orquestrais e
as originalidade e simplicidade, abissais, tudo espelhava muito a
atitude desprendida dos três que, conta-se, atravessaram o País
rodando numa Kombi velha, espalhados entre instrumentos e músicos, a
fim de enfrentar o frio dos estúdios de gravação
paulistas.
Idealismo e loucura. O suntuoso bilro na capa que
se abria em álbum anunciava logo o bom gosto artesanal e a dedicação
dos novíssimos artistas, acrescentando-se aí a peculiar e típica
forma relacional do cearense que buscava mostrar-se no Sudeste, sem
saber se dele receberia a mesma acolhida, própria do povo de
Alencar. Além, o sugestivo e quilométrico título original “Meu
corpo, minha embalagem, todo gasto na viagem” já compartilhava as
experiências com o ouvinte antes mesmo de ouvir-lhes. Fotos
pequenas dos três, ainda muito meninos, e as letras, tudo muito
caprichado, num verdadeiro e tear pacto com sua terra, seus valores,
suas raízes, alternativa à nova existência na música brasileira dos
borbulhantes anos 70.
Aliás, à audição menos contida se
percebe de cara que o disco é impregnado de lembranças e recortes do
Ceará, fazendo pensar que o segundo título aplicado à obra, Ednardo
e o Pessoal do Ceará, estava realmente muito bem encaixado ali,
embora depois tenha-se sugerido que o “pessoal” já incorpora toda a
leva que deslocava-se isoladamente, como Fagner, Belchior, Cirino,
Jorge Mello (este piauiense), Fausto Nilo, Manassés, etc.
Na
contingência radical dos governos militares dos anos 70 e na esteira
de lembranças da turma da rua Artur Temóteo, da formatura em Química
na UFC, do colégio do velho pai e dos parceiros que daqui nunca
saíram, Ednardo foi formar uma personalidade muitíssimo forte dentro
daquele cenário novo e às vezes insípido da fama. Exprimindo-se
coerente com a influência intelectual (como a Augusto Pontes e
Brandão, por exemplo), buscava ultrapassar a limitação espacial dos
que prendiam-se à terra natal ou voltavam frustrados das
experiências mal sucedidas nas gravadoras (que só existiam no
Sudeste), tentando superar os vagidos tão comuns nos artistas até
mesmo de hoje. Esse álbum reflete muito bem tudo isso.
Rodger
é físico, Ednardo, químico. Ednardo estava ocupado com o
casal, mas fazia reagir bem as suas porções compositor e intérprete.
Exprimia com sua ordem pós juvenil o caráter de aproximação de sua
música com as raízes populares, com o canto da rua, conhecendo logo
a identificação com o público de seu lugar. Aqui, numa reação muito
espontânea de receptividade de público, desde sempre ele foi
atestado e aprovado, cantando muito perto do que era bom de ouvir,
até virar referência a outros tantos, mais à frente.
Embebido
em múltiplas referências populares, o disco tem o toque marcante e
impetuoso do violão de Ednardo, além da voz suave quase adolescente
desse autor. Nos faz pensar que à época compunha essencialmente ao
violão, o que viria a mudar na entrada dos anos 80, passando ao
Rhodes. O maracatu cearense, ritmo presente em praticamente toda
a obra dele, está em “Terral” (“Aldeia, aldeota, estou batendo na
porta pra lhe aperrear...”), uma espécie de hino pop dos que habitam
sua cidade. Em “Ingazeiras”, uma caprichosa orquestração onde os
violinos entram como que imitassem o canto das cigarras, Ednardo
desfia suas cordas com arrebatamento lírico, tanto quanto em “Beira
Mar”, que também tem sensível backing de Teti (à época, Tetty). As
vozes, aliás, estão muito afinadas nos dois, o que o timbre e a
enorme limitação técnica de Rodger Rogério não favorece ocorrer. Ele
comparece fundamental nas composições, sobretudo com Dedé, mas
também com Augusto Pontes, cabeça proeminente na carreira de
Ednardo, responsável por um dos melhores momentos do long play, em
“A Mala”, interessante e angustiante canção, assemelhada a “Na Hora
do Almoço” de Belchior e também “Águas de Março” de Jobim. “Palmas
pra dar Ibope” parecia preconizar o que deveria extrapolar as
possibilidades da obra, numa parceria de Ednardo e Tânia
Araújo.
O certo é que Rodger, Tetty e Ednardo dialogavam bem,
o que não significa que se tenha levado a cabo em experiências
posteriores, quando jamais estiveram juntos de novo em disco,
podendo estar um fora do arco de influências do outro ou ínsito
nele. A palavra à qual estavam intimamente relacionados os três era
“intenção”, difícil nos tempos de admoestações oficiais e censuras
às novas formulações que reagissem ao preestabelecido, político e
artístico, sofrer como Caetano e Gil. A ela cumpria estar
atento.
Em ontológica oposição ao imediatismo das gravadoras,
Ednardo teve que esperar uns bons cinco anos até conhecer a fama
fora de seu lugar (quando serviu de tema de abertura da novela
Saramandaia), o que não ocorreu com os outros que, apesar de
experiências fonográficas outras, limitaram-se em
alcance. Ednardo nunca abriu mão da liberdade conceitual, sempre
esteve atrelado a um conteúdo muito próprio, característico,
compondo trilhas para filmes e discos belíssimos, o que fez tornar
sua música realmente muito auto-referente neste plano, e merece
sempre crítica por parte daqueles analistas da grande mídia, ou
seja, dizem que a imagem que o artista construiu de si mesmo tem
traços avassaladores de individualismo.
Esse é um
contraponto, aliás, porque num desses abismos dialéticos vêm
precipitar-se sempre um ou outro artista meio desvanecido de si
mesmo, que considera-se incompreendido do todo, etc e tal. Isso
complica tudo na carreira de Ednardo, posto que, encontra ainda ele,
grande identidade popular em suas canções e tem público fiel, shows
o ano todo. Esta de compartir, dialogar com o grande público, a
interlocução fluida, é uma constante aqui nesse tempo de “Meu corpo,
minha embalagem, todo gasto na viagem”, réplica perfeita dos tempos
impróprios para as paradas (de sucessos, inclusive), as estagnações,
o fim. Que engendrem isso e não confundam com poder. É viajar de
Kombi e ver a poeira subir.
Valdo
Siqueira
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