PRIMAVERAS E OUTONO
A cultura depois da abertura

Jornal O POVO
Fortaleza, Ceará - 15 de março de 2005


Paulo Linhares -
Especial para O POVO


Tese: a cultura cearense passou por duas primaveras e um outono.
A primeira foi a mais bela. Final do século XIX, a partir de 1870, quando Fortaleza tornou-se uma cidade de porte médio e construiu sua infra-estrutura urbana, fruto de uma sociabilidade nascida das novas conexões de informação com a Europa e da emergência de uma burguesia urbana letrada. Com o surgimento do sistema de gás carbônico na iluminação pública (1867), a biblioteca pública (1867) nasciam as academias literárias e científicas (a Academia Francesa de 1872, o Instituto do Ceará, de 1887,a Padaria Espiritual, de 1892 e a Academia Cearense de 1894).

Nos cafés explodia a verve, o humor e a inteligência do primeiro de grupo de literatos e cientistas capazes de balançar a província: Capistrano de Abreu, Tristão de Alencar, Araripe Júnior, Antonio Felino Barroso, Domingo Olimpio, Raimundo Rocha Lima, Xilderico de Faria. Surge, em seguida, uma porção abastada das elites que se propunha a pensar a ciência, como: Tomás Pompeu de S. Brasil, Guilherme Studart, Paulino Nogueira e Antonio Bezerra. Eles próprios se nomearam ''Mocidade Cearense'' em contraponto aos ''Novos do Ceará'' (ver o livro Intelectuais organizado por Simone de Sousa e Frederico de Castro Neves, publicado pela Fundação Demócrito Rocha). Este momento de euforia e efervescência cultural na virada do século, que se confundia com as lutas contra o regime escravo e contra a monarquia, foi talvez o mais importante espasmo da produção cultural do Ceará.

A segunda primavera aconteceu no final dos anos 60 e começo dos anos 70.
Tudo se passou a partir da UFC. Primeiro, com o clube de cinema dos Institutos Básicos. Em seguida as apresentações semanais de música e teatro produzidas pelos alunos da Física, Química e Teatro (Heliomar Abrão Maia, Helio Leite, Flavio Torres, Vicente Walmick, Roger Rogério) Depois, a partir da escola de arquitetura o que seria chamado de ''Pessoal do Ceará'': Augusto Pontes, Fausto Nilo, Ricardo Bezerra, Pepe Capello, Chica, Brandão, Téti, Braguinha, Campelo Costa, Ednardo, Petrúcio Maia, Aderbal Freire Filho, Nearco, Delberg Ponce de Leon, B. de Paiva, Cláudio Pereira, Belchior e muitos outros. Com estes grupos vieram as grandes fases boêmias dos bares Balão Vermelho, Anísio e, posteriormente, o Estoril. O teatro, a música, a pintura, o cinema, tudo foi devidamente bagunçado e estimulado pelo desbunde reinante. Também nesta primavera floresceu uma geração de intelectuais ligados à educação e ciências políticas de grande qualidade: Diatahy B. de Menezes, Lauro de Oliveira Lima, Luis Edgar Cartaxo, Edgar e Evaristo Linhares, Luiza Teodoro.

O outono veio quando se esperava a terceira primavera. Depois da abertura política. Dizia-se durante a ditadura que as gavetas estavam cheias de textos originais e belíssimos, e que, com a abertura, a primavera seria uma explosão. No Ceará, a cultura acordou da grande noite de ressaca. Ninguém que viveu os anos difíceis conseguiria imaginar um bode maior.

No período da ditadura, a vida política, proibida de se expressar abriu brechas em todos os cantos. Uma livraria, o cinema de arte, o lançamento de um livro, a uma vernissage, tudo era motivo para a resistência. Havia também a censura política e moral, que fazia com que filmes, proibidos, músicas e até novelas se transformassem em objeto de devaneio. E finalmente, vivíamos num isolamento absurdo porque a informação era muito reprimida e o país vivia um nacionalismo verde e amarelo, xenófobo que nos impedia de conhecer o mundo.

Com a abertura, a política ocupou imediatamente todos os espaços e cada um fez o seu discurso de libertação. Como lembrou um grande ensaísta português, ''o que irrompeu foi algo profundamente cultural: foi a possibilidade dada a cada um de tomar a palavra. Mais tarde havia de se perceber que tomar a palavra não basta, porque, depois do momento expansivo em que a palavra explode na sua nudez anteriormente reprimida, os discursos deixam-se contaminar pelos lugares-comuns, e tornam-se muitas vezes, reproduções supostamente espontâneas de falas sociologicamente inculcadas e sem qualquer originalidade''.

Durante a grande noite, a cultura havia se transformado com as novas tecnologias da informação, os padrões de entretenimento ganharam força, e o mercado dos bens simbólicos (ou campos da cultura, como queria Bourdieu) se sofisticou - nosso Cearazim perdeu este bonde. Enquanto os intelectuais se intoxicavam do pessimismo da escola de Frankfurt, bebendo das dialéticas negativas de Adorno e Horkheimer, contra as posições mais iluminadas de Benjamin e Bretch, a Rede Globo tomava conta do pedaço, destruindo nosso arremedo de indústria audiovisual que se chamava TV Ceará, Canal 2.

O cultural industrial se tornara aqui, como acontecera em todo o mundo, uma instância invasora de todos os domínios da vida quotidiana, com por um lado, a explosão das novas tecnologias da informação, avançando sobre a reprodução cultural, e por outro, a tendência ameaçadora da banalização high tech. Este processo colocou em cheque as hierarquias tradicionais entre arte culta e cultura de massa.

O Ceará até que tentou se preparar para essa marcha avassaladora. Do começo dos anos 90 até 96 houve um esforço de Estado. Mas não conseguimos força financeira, nem acumulação de capital simbólico, para criarmos indústrias culturais sustentáveis. A excessiva e perversa acumulação de renda impediu o aparecimento de um mercado interno capaz de dar estabilidade à vida artística local. Sem contar que parte da nossa inteligência não entendeu que, a partir daí, não interessa fazer cultura para o povo. Interessa fazer povo para a cultura.

O que aconteceu aqui se repetiu em todo o mundo. A cultura, ao ganhar padrões de indústria, recruta os melhores cérebros. Onde não se tem indústrias da cultura, as boas cabeças vão para outras áreas como: direito, publicidade, medicina, ou mesmo embora pra Pasárgada. Neste cenário, é cada vez mais necessária a implantação de políticas culturais de Estado para contrabalançar nossa fragilidade estrutural no terreno da produção de conteúdos (terceira última e definitiva fase final do processo de mundialização em que nos encontramos).

Estamos diante de um enorme desafio:ou se institucionaliza uma estratégia política ou passaremos o resto do novo século ''esperando dar carneiro para irmos todos embora pro Rio de Janeiro, pois as coisas continuam lá e só assim podemos voltar em vídeos multicoloridos pra menina distraída repetir a minha voz: e Deus salve todos nós''. (Trecho extraído da profética música ''Carneiro'', do mais iluminado dos poetas da nossa cultura: Augusto Pontes).


Paulo Linhares é coordenador do Centro de Documentação e Pesquisa do Dnocs e professor da Universidade Federal do Ceará (UFC)


Nota de Aura Edições Musicais: A música "Carneiro" de autoria de Ednardo em parceria com Augusto Pontes, foi realizada em 1971, está gravada no disco "O Romance do Pavão Mysteriozo - Ednardo - 1974 - RCA Victor, relançado em CD em 2001 pela BMG.
Trecho da letra: "Amanhã se der o carneiro / vou m'embora daqui pro Rio de Janeiro / As coisas vem de lá / Eu mesmo vou buscar / E vou voltar em "videotapes" e revistas supercoloridas / Pra menina meio distraída repetir a minha voz / Que Deus salve todos nós / E Deus guarde todos vós"