Gamela da Nossa Mistura

Jornal O Povo - Fortaleza / Ceará,
06 de Fevereiro de 2005.

Entrevista à Eleuda de Carvalho.
Vida & Arte - Cultura


(observações:  Aura Edições Musicais).
O cantor e compositor cearense botou o maracatu pra tocar no rádio e na tevê. Com Pavão Mysteriozo, a batida do ferro e o poema de cordel estavam todos os dias na Globo, tema da novela Saramandaia. Ele também incorporou à MPB outros ritmos, sua fina poesia, a cultura popular e um bocado da história de nossa gente - da Padaria Espiritual à Guerrilha do Araguaia.

A UFC (Universidade Federal do Ceará) fervilhava, naqueles fins dos anos 60. Aliás: o mundo inteiro ardia com a chama acesa por uma geração insubmissa que ousou subverter os costumes, demolir o poder. Por estas bandas de cá, esse fogo queimava. Parte dos moços escolheu o sonho da psicodelia ao pesadelo que se anunciava nos clarins dos quartéis. Outra parte preferiu o coletivo à singularidade.
Teve também os que costuraram o roto tecido social com as linhas da arte. Mesclando os ingredientes do inconformismo e o combate à velha ordem, criaram acordes novos, dissonantes. Falaram de tudo isso, do momento, da rebeldia, da força da juventude.
É nessa encruzilhada de tempo e espaço que emerge o chamado Pessoal do Ceará. Dentre eles, o estudante de química José Ednardo Soares Costa Sousa.
 


 
EDNARDO
 ‘‘Não deve passar despercebido,
 nem aos olhos mais desatentos,
o simbologismo do maracatu
 em suas cargas conceituais‘‘

Maracatu Estrela Brilhante
Maracatu o teu brilho errante
Gamela da nossa mistura
Tão linda tão mista e tão pura

Maracatu

Garra maracá já guerreiro 
Batuque ferro e ganzá
A flecha cravada no céu brasileiro
Infinitamente cantar, cantar, 

Cantar


''Maracatu Estrela Brilhante'', Ednardo - disco Ímã (BMG/Sony - 1980)

No princípio, tocaram seus violões, soltaram a voz nos centros acadêmicos, daí aos bares da cidade, aos botecos da beira do mar. Que som é esse? Um dia, tiveram que sair da aldeia. Brasília. São Paulo. Rio de Janeiro. Pra ''voltar em vídeo-tape e revistas supercoloridas'', como cantou Ednardo em ''Carneiro'', faixa de abertura do seu primeiro disco solo. Primeiro, veio acompanhado, em 1973. Na capa do LP diferente, a almofada e os bilros da rendeira. Era o Pessoal do Ceará: Ednardo, Rodger Rogério e Téti (o outro título do disco é Meu corpo, minha embalagem, todo gasto na viagem).

Ednardo abre a cena com o maracatu ''Ingazeiras'', que ele fez em homenagem ao artista plástico Aldemir Martins. Depois, outro maracatu assinado por ele, ''Terral''. Aí vêm ''Cavalo-Ferro'' (Ricardo Bezerra e Fagner), Rodger Rogério cantando ''Curta-Metragem'' (dele e José Evangelista, o Dedé), Téti em ''Dono dos teus olhos'', de Humberto Teixeira. E ainda tem outro maracatu do Ednardo, ''Beira-Mar''. Pronto. Do asfalto carnavalesco, o maracatu cearense ingressava pela porta da frente na MPB.
Em 74, com O Romance do Pavão Mysteriozo, Ednardo consolida seu caminhar. Neste disco emblemático, além da faixa título, inesquecível, tem ''Dorothy Lamour'' (de Petrúcio Maia e Fausto Nilo) e ''A palo seco'' (de Belchior). Em 76, ''Pavão Mysteriozo'' é tema de abertura da novela Saramandaia, de Dias Gomes, e Ednardo lança outro LP.

O nome, um luxo - Do boi só se perde o BERRO e é justamente o que eu vim apresentar. Aqui, a história cearense serve de mote pra canções como ''Artigo 26'' e ''Padaria Espiritual'', ambas sobre o movimento literário que agitou Fortaleza no final do século 19; tem ''Passeio Público'', para os confederados, e o maracatu ''Longarinas''. No disco de 77, O Azul e o Encarnado, Ednardo resgata o pastoril (entre as faixas, salta um ritmo maranhense, em ''Boi Mandingueiro''). A reverência aos ancestrais está presente em Cauim, de 78, também título de vídeo dirigido por Ednardo.

Em 79, o disco Ednardo inclui a saborosa ''A manga-rosa'', a lírica ''Flora'', e a instrumental ''Araguaia''. Parcerias em ''Lagoa de Aluá'' (com Climério e Vicente Lopes), ''Enquanto engoma a calça'' (dele e Climério), além de ''Lupiscínica'' (de Petrúcio Maia e Augusto Pontes). Em 80, Ednardo lança o solo Ímã e o duplo Massafeira (fruto do evento homônimo, que reuniu o Pessoal do Ceará à nova geração - Calé Alencar, Chico Pio, Stélio Valle, Pachelly Jamacarú, os irmãos Fonteles, além da presença luxuosa de Patativa do Assaré).

Ainda nos anos 80, o artista lança Terra da Luz, outro Ednardo e Libertree. Volta a gravar em 91, o ao vivo Rubi. Em 2000, Única Pessoa. Em 2002, lança, com Belchior e Amelinha, um segundo Pessoal do Ceará. Assina também as trilhas sonoras dos filmes Tigipió, de 85, Luzia-Homem, de 87 (no qual também atua), e O calor da pele, de 94. Ednardo nasceu em Fortaleza, no dia 17 de abril de 1945. À beira dos 60 anos, o artista continua criando, encantando e influindo em novas gerações por todo o Brasil.

(Eleuda de Carvalho)

 

O POVO - Antes de falar sobre sua música e de como incorporou à sua linguagem a batida do maracatu cearense, qual foi a primeira imagem do maracatu que você viu, ouviu? Por exemplo, o Estrela Brilhante, que você homenageou na canção.

Ednardo - Não deve passar despercebido, nem aos olhos mais desatentos, o simbologismo do maracatu em suas cargas conceituais. Força cósmica, o maracatu perpassa incólume ao tempo. No caldeirão brasileiro de raças, somos índios, pretos, brancos, amarelos, vermelhos, marrons, sararás, caboclos, cafuzos, crioulos. A característica notável e ímpar do maracatu cearense, além da presença de nosso povo miscigenado, é a atitude guerreira na síntese de resistência em festa de libertação e manutenção de culturas. Além do interessante vestuário, os rostos pintados, a dança, os instrumentos de percussões onde adicionam o triângulo de maracatu, fabricado com sabedoria de tonalidades harmônicas, são todos estes itens elementos diferenciais, significativos e inconfundíveis.

Na infância, vi pela primeira vez os maracatus em Fortaleza: Estrela Brilhante, Ás de Espadas, Ás de Ouro, vinham faiscantes pela rua que não tinha eficiente iluminação pública, causavam efeito especial à auto-iluminação dos blocos feita por dezenas de lampiões, candelabros de lamparinas revestidos com tênues tecidos vermelho-laranja-amarelo que tinham efeitos de tochas de fogo, faziam uma espécie de cordão que circundava o bloco. Vinha o baliza com uns passos gingados e um bastão nas mãos, sua dança uma mistura da pisada indígena com a malemolência africana, o abre-alas para os morubixáuas e suas índias e uma grande ala de índios, os pajés faziam circunvoluções, um cheiro de ervas aromáticas no ar, aí vinha a corte real, com a calunga, os grandes leques de abano, o balaieiro com frutas da região incrivelmente equilibradas na cabeça sem por as mãos enquanto gingava.
Depois soube que tinham rituais, primeiro se reuniam no Parque da Liberdade (Cidade da Criança, em frente à praça Coração de Jesus), depois juntavam-se os blocos na praça do Passeio Público e começavam a bater tambores, entoar loas, de longe a gente escutava a preparação e quando o maracatu passava tinha tal emoção contagiante, o grave dos tambores, o contraponto com o timbre metálico agudo dos triângulos.

OP - Fale do Pavão Mysteriozo, o folheto, e de como você criou, a partir dele e com a pancada do maracatu, uma das mais emblemáticas músicas do Brasil, tema de uma novela surrealista do Dias Gomes, Saramandaia (1976).

Ednardo - Com um pé na realidade nas cenas e culturas do Ceará, e outro nas realidades urbanas, Fortaleza, São Paulo, Rio, aprendizado e estradas, informações amplas e descobrindo outras. O Nordeste brasileiro tem confluência com a tradição ibérica, hoje em dia, mesmo os mais novos - que ainda não saibam onde estão pisando - é bom que se liguem no prosseguimento do que foi construído por seus antecessores de todas as raças.
O folheto de cordel do Pavão Mysteriozo é uma destas consciências de que artistas são depositários da sabedoria popular, devemos procurar entender estes ensinamentos, podemos dar nosso grau conforme momento e lugar, atuamos no emblema contemporâneo do mundo.
Apenas dei forma, ritmo e voz, concretizando em sons o que todos já sabem, e podiam estar esquecidos, como se escolhe flores, palavras e energias para ofertar a quem estiver aberto para receber.

OP - O maracatu era, até você capturar em pleno vôo este misterioso e belo pavão, umas canções do Capiba, quer dizer, se alguém sabia o que era, era via Pernambuco. Tanto que muita gente ainda pensa que o nosso maracatu é derivado do maracatu de lá, trazido na década de 30 pelo folião Pedro Boca Aberta, depois de um carnaval que ele passou no Recife. O escritor cearense Gustavo Barroso, no seu livro de memórias Coração de Menino, relembra o pavor que tinha da batida lenta dos maracatus no centro de Fortaleza, fala das caras tisnadas, isto recordando fatos de 1880, por aí.

Ednardo - O maracatu do Ceará existe há bastante tempo. Ao perceber sua beleza, trabalhei para criar uma das possibilidades de abrir escaninhos locais onde eram mantidos e mostrar para um maior número de pessoas. Se tão antigo em organizações de blocos quanto o de Pernambuco, é interrogação que será mais esclarecida quando fizerem estudos detalhados, mas esta espécie de ''simbiose estética'' está entranhada em nossos arquétipos culturais e raciais, tem visíveis diferenciações, leva a crer que é pouco provável que tenha sido simplesmente ''importado'' de outro estado, isto pareceria estratégia de exclusividade sobre o maracatu.
O sincretismo religioso que acontece no Brasil entre as civilizações ameríndias, européias e africanas desde o descobrimento à atualidade não pertence a um estado definido por fronteiras físicas, está onde estão pessoas de diferentes credos e raças.
 
Existem versões sobre o sincretismo nos diversos aspectos do cerimonial, estético, doutrinário das teorias místicas relacionadas com a formação do mundo e conjunto de divindades que formam a história das religiões. Uma delas, seria a forma da civilização dominante impor sutilmente sua própria religião e cultura aos dominados e a outra, da cultura dominada burlar a dominante, fingindo adorar seus deuses, mas na realidade venerando suas próprias entidades, associando umas às outras. Sabe-se dos cortejos negros das irmandades religiosas do Crato, Icó, registrado por Eduardo Campos, Sérgio Pires, Gilmar de Carvalho, e também nas memórias de Gustavo Barroso.
Mas em nenhum momento o pessoal que faz o maracatu cearense tem dúvidas que isto pertence a eles, nesta mistura entre o sagrado e o profano, entre o sonho e a realidade.

OP - Diferente dos dois estilos do maracatu do Pernambuco, o mais do candomblé, de Nação chamado, e o mais acaboclado da Zona da Mata - mas ambos com um ritmo acelerado. Já o maracatu cabeça-chata tem esta coisa lenta, lenta, lenta, linda, quase uma latomia, um bendito pungente, som hipnótico, uma tristeza pungente marcada pela batida poderosa no triângulo de ferro.

Ednardo - O maracatu cearense não tem viés de tristeza e severidade, são palavras que serviriam para o equívoco de tese que alguns defendem para retirá-lo do carnaval e colocá-lo no folclore, como objeto de pesquisa no passado.
O maracatu cearense tem a força da resistência e alegria. Filmando Cauim em Fortaleza
(média metragem- 46 minutos em película 16 mm p/b), na parte do roteiro do filme realizada no carnaval de 1977, um dos focos no maracatu cearense, um repórter foi me entrevistar em plena ação de filmagens: - Você não acha inadequado e triste o maracatu cearense, seria melhor retirá-lo do carnaval. (Na época, faziam campanha para o carnaval cearense se assemelhar às escolas de samba do Rio). No insight do momento mostrei que os componentes do maracatu estavam desfilando com rostos de felicidade para o público e não para a câmera. Perguntei: onde você está vendo tristeza?
Lembro que conversando com Descartes Gadelha (72), ele junto com amigos estavam formatando a Escola de Samba Ispáia Brasa, quando falou de concepções rítmicas que forneciam uma identidade misturando batuques indígenas com negros, eu disse que era um achado fenomenal e quando possível levasse para o maracatu do Ceará. Eu já havia dado uma acelerada rítmica em alguns maracatus que gravei em discos, Descartes com outros amigos formataram o Maracatu Nação Baobab, que revolucionou o maracatu cearense e também rendeu críticas absurdas. Falavam que ele estava descaracterizando o maracatu. Ora, logo ele, iluminado com luz intensa!

OP - O que você pode falar sobre a geração manguebeat, o Chico Science juntando maracatu e hip hop e influenciando toda uma nova galera? Aqui, você sabe que seu trabalho, em particular, está no âmago da rapaziada que usa os ritmos populares numa linguagem atual. Mas ninguém fala muito. Como é esta história do santo de casa não fazer milagres?

Ednardo - Maracatu é célula básica, uma das vertentes rítmicas da música brasileira, célula tronco, fornece a seiva para outras transformações. Quando o pessoal do Ceará e Pernambuco utilizam estas informações, é para continuar a linha evolutiva da música brasileira, de seus ícones ancestrais à atualidade. Desde as primeiras músicas gravadas em meus discos, existem vários maracatus, em diversas nuances: ''Terral'', ''Pavão Mysteriozo'', ''Longarinas'' (anos 70); ''Ser e Estar'', ''Ponto de Encontro'' -
("Ponto de Conexão") (anos 80), em abordagens desde maracatus lentos aos acelerados. O Chico e a valorosa geração manguebeat forneceram suas contribuições ao maracatu de Pernambuco, lembro que Ariano Suassuna criticou Science e Nação Zumbi, mas a moçada de Pernambuco gostou e depois Suassuna se rendeu à evidência.
Também vamos dizer viva a Descartes Gadelha, que antes do Science teve coragem de misturar e acelerar os ritmos e colocar o bloco na rua, vivas ao Calé Alencar, Pingo de Fortaleza, Dílson Pinheiro, pela continuidade do maracatu tradicional e pelo zelo de registros, e a todos os mestres do maracatu cearense e seus trabalhos que se estendem na esfera de preocupações sociais.

Tenho consciência do alcance das músicas que faço e seus naturais limites. Foram realizadas com objetivos amplos, mas também simples vontade de cantar. Sei que estão no âmago das novas galeras, mas não penso em alimentar expectativas em histórias de santos de casa e milagres.
Sigo compondo e cantando, o restante fica por conta de vocês.

OP - No I Festival de Violeiros e Cantadores (outubro de 2004, em Quixadá e Quixeramobim), quando você subiu ao palco e começou a cantar - e olhe que você rearranjou suas composições, inclusive, o ''Pavão Mysteriozo'' - todo mundo cantou junto. Como é criar uma música que ultrapassa duas, três décadas?

Ednardo - Em shows pelo Nordeste, em Teresina, encontrei mestre Luiz Gonzaga, sorriso estampado no rosto e voz forte chamando: - Ednardo venha cá, ouvi dizer que você não está cantando ''Pavão Mysteriozo'' nos shows, faça isso não meu filho, você foi abençoado pelo povo, sucesso genuíno. Até hoje canto ''Asa Branca'' porque o povo pede, não deixe de lado essa música, gosto muito dela e o povo também. Foi ensinamento de mestre.
No Festival de Violeiros e Cantadores, ouvi de novo os mestres (entre muitos que tenho) e coloquei no roteiro esta e outras músicas de meu repertório, também abençoadas pelo povo.
Os arranjos atuais partem principalmente da compreensão dos arranjos originais e também pela leitura de novos músicos cearenses da banda que me acompanha, confio em suas sensibilidades, são excelentes profissionais, os acordes e ritmos, tudo passa por minha concordância. Ao constatar que ultrapassam gerações, duas, três décadas, permanecendo íntegras e significantes, penso que é porque assim foram feitas. Posso me considerar um sujeito de sorte e de forma geral querido pelo público, além do mais, minhas músicas, quando analisadas pelo povo e críticos especializados, pelo que percebo, fornecem sensação de que não fugi da raia de meu tempo e espaço e, segundo atestam, continuam servindo de faróis para muitos.

OP - A gente aqui vê você menos do que desejaria. ''Amanhã, se der o carneiro/ vou-me embora daqui pro Rio de Janeiro...''. E você foi. Bate a saudade? Como é ver o Ceará de longe? Você pensa em voltar, ou só ''em vídeo-tape''?

Ednardo - Também desejaria que nossas cidades nos vissem e ouvissem muito mais, que o foco de atenções tivesse identidades próprias, não esperasse ver ou ouvir primeiro seus artistas em outros locais, principalmente no exterior, para depois reconhecê-los como legítimos representantes de nosso povo. A pergunta, mesmo específica e dirigida, cabe amplamente à grande parte dos artistas brasileiros. Mas as respostas, talvez, seriam mais esclarecedoras se fornecidas pelos que articulam a mídia e meios de comunicação. Seria legal que nossos meios de comunicação, nossos governantes, tivessem orgulho de seus artistas, que são antenas da raça, e nos tratassem melhor para não sermos forçados a cada instante a dar nomes aos bois que atravessam os trilhos da música brasileira, hoje em dia mais respeitada no exterior que no Brasil.
Mas estou mais perto de minha terra que muitos que aí residem. É claro que sempre bate saudades de Fortaleza, mas como voltar pra uma cidade da qual nunca saí?