HOMENAGEM AO MESTRE
INGAZEIRAS - Música para Aldemir
Jornal Diário do Nordeste-Caderno 3
Publicado em 22/01/2005


Amigo de Aldemir Martins, o cantor e compositor Ednardo homenageia o artista plástico através de uma carta inédita, em que revela momentos como o da criação da música “Ingazeiras”

Nascido pela Ingazeiras,
Criado no oco do mundo
Meus sonhos descendo
ladeiras
Varando cancelas, abrindo
porteiras,
Sem ter o espanto da morte
Nem do ronco do trovão
O sul, a sorte a estrada me
seduz,
É ouro, é pó, é ouro em pó
que reluz,
É ouro em pó, é ouro em pó,
é ouro em pó,
Que reluz, o sul a sorte, a
estrada me seduz,
Cemoara

Música e Letra realizada por Ednardo em 1972
Gravada no disco Pessoal do Ceará
1972 Continental/Warner

Desde adolescente, acompanho os desenhos e quadros inconfundíveis de Aldemir Martins. Alguns livros de Leonardo Mota que li, foram ilustrados por bico de pena, galos, cangaceiros, bandas de pífaros, mulheres, redes e paisagens. Outra vez, visitando outro grande artista cearense, Estrigas (Nilo Firmeza), vi com que carinho mantinha em sua casa do Mondubim, quadros raríssimos de Aldemir. Ele me contou que um dos componentes do grupo de artes plásticas havia picotado um quadro do Aldemir e servido em pratos.
O “troco” de Aldemir não demorou. Algum tempo depois, ele realizou uma série de quadros belíssimos, todos eles pintados em pratos.
Depois da comida servida, a arte continua plena nos pratos como tela, tão perene quanto a fome e o desejo de alimentação. Ele não teve medo de colocar desta forma, uma das respostas mais geniais de um artista plástico a seus contemporâneos. Aldemir nasceu em 1922, acontecia a Semana de Arte Moderna em São Paulo, e ele de Ingazeiras, interior do Ceará deu uma lição que nenhum modernista poderia imaginar.

Tive contato com Aldemir Martins já em São Paulo, no início de 1972. O Pessoal do Ceará tinha um programa semanal na TV Cultura São Paulo; programa musical e de entrevistas com personalidades da arte e cultura brasileira, sugerimos que Aldemir fosse entrevistado e foi um banho de cultura, arte e integridade artística.

Seu jeito direto, simples e sincero de falar, olhando com seus olhos de índio cearense nos olhos do interlocutor, não perdendo movimento por menor que fosse, tudo ele observava e muito do que via transformava em desenho e pinturas. Aldemir fotografa instantâneos em seu olhar individual para torná-los coletivos, pessoas, bichos, fatos e paisagens, pinçando de cada momento, mais que figuras, também o clima e a energia.

Eu, Belchior, Rodger e Téti, fomos ao seu ateliê em São Paulo, escutamos embevecidos, por muitas horas, ele contar sua saga desde que saiu do Ceará ao reconhecimento mundial, como um dos maiores artistas plásticos da atualidade. Enquanto conversávamos, ele não parava de pintar, a maestria e rapidez impressionante de seus traços revelados na tela, a mistura de cores geniais, o grafismo forte e sutil ao mesmo tempo, a sensibilidade de captar cada momento da conversa e transformar em um quadro maravilhoso. Foi aula de mestre que não esqueceremos jamais.
Fiz a música e letra: Ingazeiras, durante esta conversa com Aldemir, está gravada em nosso primeiro disco - “Pessoal do Ceará” (1972). Depois, o disco foi relançado em CD com outra capa e título - Ingazeiras. Tive conhecimento da modificação de capa e título, após CD lançado, mas penso que é homenagem mais que justa. Aldemir nos antecedeu de forma certeira, abriu espaços e reconhecimento de nossa cultura e arte, como poucos avatares realizam.

 


Gravura 1975 - Aldemir Martins
Músicos Brasileiros

Quando residi em São Paulo, 73 a 79, no prédio vizinho onde Aldemir tinha seu ateliê, às vezes ele telefonava: “venha aqui”, conversávamos enquanto ele pintava e desenhava. Uma vez levei o violão e cantei em seu ateliê, foi quando surgiu a idéia de fazer uma série de quadros e gravuras especificamente sobre músicos brasileiros. Aldemir me presenteou uma gravura que ele disse que foi dessa fornada.
A exposição (São Paulo-75), realizada em Galeria de Artes da Rua Augusta, foi sucesso absoluto, todos quadros adquiridos na mesma noite, ele feliz solicitava tocar o disco com a música “Ingazeiras” que fiz em sua homenagem e chamou para brindar o sucesso falando aos presentes: “Esta exposição é em homenagem aos músicos brasileiros, escutem os músicos brasileiros, escutem esse menino, escutem nós todos, somos do Ceará, somos do Brasil”.


Aldemir Martins e Ednardo
Exposição São Paulo - Galeria Augusta - 1975

Aldemir Martins foi um dos primeiros artistas plásticos de sua geração a se aproximar da área literária e musical cearense ilustrando livros, por exemplo, alguns de Leonardo Mota e vários outros, juntando-se a desenho de capa no LP (1965) -“ Ceará Terra da Luz”.



Capa disco - Ceará Terra da Luz - 1965
Desenho Capa - Aldemir Martins

Estão lá os símbolos básicos, o verde mar, a jangada, a carnaubeira e o sol, junto das músicas de Humberto Teixeira, Luiz Assunção, Evaldo Gouveia, Pierre Luz, Lauro Maia, Catulo de Paula, Mozart Brandão, Gilberto Milfont, Trio Nagô, Vocalistas Tropicais, Quatro Ases e um Coringa, entre tantos outros, prefaciado por Rachel de Queiroz e sob os auspícios da Ceará Rádio Clube e Loja Vox.

Aldemir ensinou também que nós músicos, poderíamos grafar nossos discos com desenhos e pinturas próprios, foi estimulado por ele que realizei grafismo e pintura do quadro da capa do disco “O Romance do Pavão Mysteriozo”, e continuo a desenhar e a pintar na atividade artística junto à musica e à poesia. Belchior da mesma forma foi emulado nas artes plásticas com o élan de Aldemir. Justa então a retribuição que todos prestamos ao mestre.
De minha parte sou grato à sensibilidade deste artista que nos ensina também que o dom de traduzir de forma gráfica nossos sentimentos é questão de utilizarmos pincéis e penas, cores e formas, sabendo misturar as tintas da sensibilidade com grande amor e respeito a todos e a tudo que está em nossa volta e espalhar a alegria com consciência e verdade.

Rio de Janeiro, 16 de Janeiro de 2005.
Jose Ednardo Soares Costa Sousa
josednardo@uol.com.br
www.ednardo.com.br

Ednardo
Carta a/c Jornalista Henrique Nunes para publicação DN
Especial para o Caderno 3 - Diário do Nordeste