EDNARDO: 30 ANOS | Jornal
Diário do Nordeste – Fortaleza/CE, 09 de novembro de 2003 Entrevista à Edma Cristina de Góis |
Entre
as arestas do tempo
Eles começaram em bando, unidos por um desejo coletivo de cantar. Acontece que os rumos, aos poucos, foram se desenhando, cada um para um lado. Ednardo, Belchior, Fagner e tantos outros seguiram, cada um, uma geometria que tem duas unidades comuns, a amizade e a música. Passados 30 anos desde o lançamento de “Meu Corpo, Minha Embalagem, Todo Gasto na Viagem - Pessoal do Ceará” (1973), a sensação que se tem é de que alguns sons seguem a ecoar·...
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É
assim quando se ouve “Terral”, “Ingazeiras” ou “Beira-Mar”, de autoria de
Ednardo, presentes no disco de 1973, lançado por ele em conjunto com a
intérprete Teti e o cantor e compositor Rodger Rogério, através da
gravadora Continental. Ou quando se ouvem adolescentes cantarem “A Palo
Seco”, de Belchior, na recente gravação do grupo Los Hermanos. Os 30 anos
também serviram de mote para a conversa que o Caderno 3 teve por telefone
com Ednardo. A música foi apenas o fio condutor para um papo que visitou a
infância do artista e os desejos do adolescente apaixonado por
cinema. | |
Caderno 3 - Como você começou a cantar? Havia uma veia musical comum na família? Ednardo - Eu comecei a estudar piano muito cedo. Com seis ou sete anos, aqui em Fortaleza. Eu estudei piano clássico três e popular cinco anos. Em casa, minha mãe me incentivava, notando que eu tinha facilidade com a música. Meu pai era um cantor para pôr a gente pra dormir (risos), balançar a rede... O que eles faziam? Tinham algum pé na arte? Ednardo - Meu pai (Oscar Costa de Sousa) era professor. Era poeta, escrevia, tem uns quatro ou cinco livros de poesia. Eu morava no bairro Joaquim Távora nesse tempo. A gente morava ao lado do colégio, que tinha um teatro onde a gente se apresentava. Era o Ginásio Dom Bosco, na avenida Visconde do Rio Branco. Alguns amigos começaram a fazer algumas peças de teatro, coisa de adolescente. Eu também cantava nas festinhas do colégio. Acho que o início foi, basicamente, este. Depois, a gente se mudou para o bairro de Fátima, já na adolescência, com 13 ou 14 anos. Era entre as ruas Artur Temóteo e Lauro Maia. O Fagner morava numa quadra e eu em outra. Começamos, nós da turma da Lauro Maia, a nos reunir numa esquina que tinha lá. A gente fazia umas loucuras, serenatas na casas das meninas... Com essa idade, 13 anos? Mas vocês eram muito precoces... Ednardo - (risos) Eu pulei. A gente já tinha alguns anos a mais. Eu estou queimando etapas. Vez por outra a gente inventava de fazer serenata de piano. Olha que loucura! A gente colocava um piano em cima da caminhonete de um amigo e saía tocando. Tocava de madrugada, depois ia para a Beira-Mar, para aquelas peixadas. Fortaleza nessa época era uma cidade muito pequena, uma província, e comportava essas loucuras. Agora não dá mais. Mais isso tudo era ainda no campo da curtição. Eu queria que você contasse a primeira referência de som que te tocou e então você disse “É isso o que eu quero fazer”. Ednardo - Eu já fazia músicas no piano, mas como exercício, como aprendizado. A gente ouvia alguma coisa no rádio e então queria imitar o timbre. E dali saía alguma coisa. Mas foi a partir dos primeiros festivais nordestinos que as coisas foram se concretizando. Nós tínhamos algumas letras feitas. Eu tinha umas 10 ou 15 músicas feitas. Os festivais apareceram através do canal 2, a antiga TV Ceará. Eles eram realizados no Ceará, na Bahia e em Pernambuco. Eram os chamados Festivais Populares da Canção Brasileira. Eu participei desde o primeiro e logo neste eu me classifiquei. A música era “Chapéu de Palha”, que falava do êxodo dos nordestinos que migravam para o Rio. Olha que loucura, eu já estava premeditando o futuro. No fundo eu sabia que seria preciso sair daqui para fazer a coisa valer. E qual era a posição da família? A família tratar a boemia com bons olhos não é o natural... Ednardo - Mamãe marcava cerrado. Enquanto estava na brincadeira, a gente não estava fazendo música para valer, ela dava o maior valor. Quando a coisa começou a ficar séria, a gente começou a participar dos festivais, ela já ficou preocupada. E as aptidões para além da música? Ednardo - Eu estudava muito, e a noite era para esses lances de música. Quando começaram os festivais, eu já tinha um emprego na Petrobrás, na fábrica de asfalto de Fortaleza. Você seguiu alguma outra carreira? Ednardo - Eu terminei Engenharia Química, na turma de 1972. Mas quando eu entrei para trabalhar na Petrobrás, eu havia passado no vestibular. Nessa mesma época, começamos a fazer alguns programas na televisão mais a sério, como era o “Show do Mercantil”, com o Augusto Borges (até hoje apresentador do programa “Ontem, hoje e sempre”, da TVC), e “Porque hoje é sábado”, do Gonzaga Vasconcelos. Essas foram as primeiras aparições já com um aspecto mais profissional, eu, Fagner, Belchior, Teti e Rodger, Petrúcio Maia, Augusto Pontes... Era um grupo de mais ou menos 50 ou 60 pessoas. Como eram essas relações? Afinal, vocês se conheceram antes da música... Ednardo - Éramos e somos amigos até hoje. Nesse tempo as reuniões que fazíamos eram no bar do Anísio, que hoje em dia é um prédio enorme. Tinha também alguns shows, na Faculdade de Arquitetura. Alguns festivais estudantis. E daí, quando foi em 72, eu falei assim: “Não tô mais a fim dessa coisa da Petrobrás, e a Engenharia Química não é o meu objetivo de vida". E foi quando surgiu a idéia da gente vir para o eixo Rio - São Paulo. No final de 1971 e início de 1972. Porque naquela época as condições de fazer alguma coisa (em música) em Fortaleza eram quase nenhuma. Ficava mais na gandaia. Na verdade, o Pessoal do Ceará foi quem criou coragem de dar a cara pra bater, de se aventurar... Ednardo - Exatamente. E olhe que chegamos aqui (no Sudeste) sem conhecer ninguém. Em termos práticos, como foi? Mochila nas costas e vamos embora? Era uma idéia coletiva? Ednardo
- Fomos todos mais ou menos na mesma época. Diferença de meses ou dias. Eu
fiz um show em Fortaleza e uns 20 dias depois estava viajando para cá
(Rio). O Fagner foi pra Brasília primeiro, porque ele tinha uma irmã que
morava em Brasília. O Belchior veio para o Rio e passou um tempo na casa
de um amigo ou parente. Depois foi para São Paulo. Vocês tinham alguma outra atividade fora a música? Ednardo
- Eu não tinha não. O Rodger nesse tempo era professor da Universidade de
São Paulo. Era um programa interessante, “Proposta” era o nome, de
entrevistas, mas com uma conotação musical. Uma semana antes (de cada
edição do programa) a gente ia na casa do entrevistado e, dependendo da
história que ele contasse, a gente ia extraindo elementos para fazer
música. Em determinado momento da entrevista, a gente agia musicalmente,
ilustrando alguma passagem da vida do profissional.
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Ednardo
- É o nome da cidade natal de Aldemir Martins, e surgiu exatamente a
partir desse programa de TV. Eu quis fazer uma homenagem a ele. Então esse
disco, que na verdade se chama “Meu Corpo, Minha Embalagem, Todo Gasto na
Viagem” (título de autoria de Augusto Pontes), como subtítulo “Pessoal do
Ceará” foi o primeiro álbum da gente. Nessa época, como era o contato de vocês com os músicos de fora desse grupo cearense?
Ednardo - Nós começamos a fazer os primeiros shows, e era muito bom. A Fafá de Belém andava na nossa casa. Os Novos Baianos...
Então a acolhida foi boa?
Ednardo - O acolhimento foi excelente, e essa época era difícil, porque estávamos na ditadura. Para se proteger a gente procurava andar em grupo, com o pessoal da mesma área.
Você musicou três filmes, “Tigipió”, “Calor da Pele” e “Luzia - Homem”. Musicar para o cinema requer uma outra leitura. Qual a relação que você estabelece entre a sua música e o cinema?
Ednardo - Antes eu fiz outro filme, em 78, chamado “Cauim”. Eu produzi, roteirizei e fiz a música. Todo filmado no Ceará, em preto e branco. Eu gosto de cinema desde menino. Eu gostava tanto que, nessa época, a gente via os filmes nos bairros. Eu via um filme num canto e depois ia para outro bairro. Então a primeira coisa que eu comecei a tocar mesmo eram as músicas das trilhas sonoras. Eu escutava uma, duas vezes e ia fazer um arranjo para cada uma delas. A minha proximidade com o cinema foi sempre pela maravilha, pela vontade de trabalhar como ator ou fazendo música para filme. Eu fiz o “Cauim” e o disco. Logo em seguida o Pedro Jorge me chamou para musicar o primeiro filme dele, o “Tigipió”.
Você é maravilhado pelo cinema. Mas que maravilha afinal é essa?
Ednardo - Mas o cinema não é maravilhoso? É a possibilidade de você sintetizar em uma hora e meia ou duas horas uma história. Acho que é o poder de síntese. Tem filmes e diretores maravilhosos. E também a transição do Cinema Novo. As pornochanchadas não, mas as chanchadas da Atlântida, eu sempre achei muito bom. Oscarito, Grande Otelo... A minha proximidade com a linguagem do cinema é quase visceral, desde criança. Depois eu musiquei “Luzia Homem”, no qual eu trabalhei como ator. Deu para realizar as duas partes.
Você já disse que chega a acompanhar mais o cenário musical do Ceará do que quem está aqui. Você continua, assim, sendo “olheiro” do som produzido aqui?
Ednardo - É verdade. Sabe de uma coisa, dizem que a gente nunca sai da terra da gente. Eu leio, por exemplo, jornais de Fortaleza todos os dias pela Internet. E então fico por dentro da cena musical cearense. Procuro me encontrar com os amigos mais antigos e os que estão fazendo coisas novas. Continuo interessado em saber o que estão fazendo. Mais no sentido de permanecer atento, não como olheiro, mas como quem tem interesse. No caso do Ceará, o que te chama atenção agora? Ednardo - Cada vez que vou aí, me dão muitos discos. Mas eu tenho uma grande quantidade de discos e muitos são competentes. Acho complicado citar nomes, mas, sonoramente, o Ceará vai bem. | |
Ednardo - Eu acho isso muito chato. Eu não gosto de compilações. Essa coisa de pegar um disco e de misturar com outros... Hoje em dia as grandes gravadoras querem o sucesso imediato, e para lançar discos de inéditas é complicado.Os próprios artistas estão atrás dos selos próprios. Eu não estou sozinho nisso aqui, são muitos, a Maria Bethânia, o Fagner, a Gal Costa, o Belchior... Eu também tenho o meu selo “Aura”. Tem mais alguém na sua casa que tem vocação para a música, ou a arte em geral? Ednardo - Meus irmãos (Régis e Rogério) que moram em Fortaleza são cantores e estão batalhando. Na minha casa, aqui no Rio de Janeiro, tem a Joana Limaverde, que é atriz, está na novela “Celebridades” da TV Globo e já fez umas nove ou 10 novelas. Tem o Gabriel, que é músico, cantor e compositor. Ele é biomédico e fica entre as duas coisas, a música e a pós-graduação. Eu acho que a gente não deve desestimular. Cada qual tem o seu caminho. Tem a Júlia que é atriz e está trabalhando no cinema, mais voltada para a questão da direção. E tem o Daniel, que está na fase de estudos, mas toca violão e flauta. Todos eles têm uma proximidade muito grande, tipo DNA, com a arte, a música, o teatro, essas vertentes. Dá tempo de sentir saudades daqui? O tempo abre uma aresta... Ednardo - Dá, dá muita. Se eu pudesse escolher um local para morar, seria aí. O tempo abre sim arestas. Tem gente que perde a relação com a terra. Eu, como vou cinco vezes por ano até Fortaleza, não passo por isso. E daqui pra frente, passados esses 30 anos de carreira? Ednardo - Ah, o futuro a Deus pertence (risos). A gente pode ajudar na medida do possível a construí-lo. Eu tenho projetos, mas não quero adiantar. É bom falar quando eles estão engatilhados, bem encaminhados, quase para serem realizados. Edma Cristina de Góis / DN | |