Correio
Braziliense Brasília,
domingo, 05 de maio de 2002 |
Cultura Música
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Saudosas lembranças |
Depois de terem dominado o
cenário musical brasileiro nos anos 70, Amelinha, Belchior, Ednardo, Elba
e Zé Ramalho revisitam as raízes regionais e mostram em seus novos
trabalhos todo o vigor da produção nordestina
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Rosualdo Rodrigues Da equipe do
Correio
Poucas vezes a
mídia do ‘‘Sul’’ demonstrou tanto interesse pela música nordestina quanto
nos anos 70, quando o Brasil ficou conhecendo os paraibanos Elba e Zé
Ramalho, os pernambucanos Alceu Valença e Geraldo Azevedo e os cearenses
Fagner, Ednardo, Belchior e Amelinha. Outros tentaram, mas, passada a
onda, foram esses que marcaram aquele momento e levaram a carreira adiante
— alguns com altos e baixos. Agora, mais de três décadas depois, quatro
dos expoentes da música produzida no percurso entre Pernambuco e Ceará
chegam coincidentemente às lojas com novos discos.
Elba Ramalho
leva material de primeira na turnê que costuma fazer todo ano pelo
Nordeste, durante o mês de junho: o repertório do disco Elba Canta Luiz,
feito de músicas compostas por Luiz Gonzaga ou tornadas célebres na voz
dele. Depois de homenagear compositores nordestinos e Raul Seixas em
seus dois últimos álbuns — Nação Nordestina e Zé Ramalho Canta Raul Seixas
— Zé Ramalho lança disco ‘‘100% autoral’’, O Gosto da Criação. E os
cearenses Ednardo, Belchior e Amelinha matam a saudade cantando juntos
antigos sucessos em Pessoal do Ceará.
Produzido por Robertinho do
Recife, assim como o trio de cearenses, Zé se entusiasma com a iniciativa
dos amigos. ‘‘Na verdade, os cearenses deveriam ter voltado há muitos
anos, são raízes da música nordestina’’, diz ele, que passou por
bem-sucedida experiência do gênero, a série O Grande Encontro. ‘‘Foi
marco na minha carreira, ali voltei de um tempo turbulento, onde estava
infeliz no casamento, envolvimento com drogas, um inferno. Consegui me
curar, recuperar minha credibilidade diante das gravadoras.’’ O
relacionamento amoroso também sobreviveu. ‘‘Neste disco, trato da
valorização do casal. Estou em um casamento de 18 anos e sinto que passei
sentimentos comuns às relações’’, diz Zé. O que não significa que O Gosto
da Criação seja romântico. ‘‘Este disco 100% autoral mostra minha veia de
autor, meus questionamentos da origem do homem, da humanidade. É uma forma
de espalhar minha leitura atual no início do século 21.’’ Entre as
canções, todas inéditas, há uma balada — O Silêncio dos Inocentes — que
ele compôs sob encomenda para Cássia Eller. ‘‘Ela me pediu uma música para
um próximo disco, com autores da MPB que curtia. Fiz num hotel de Belo
Horizonte e enviei. Soube que ouviu e chorou. Logo depois, aconteceu a
tragédia. Ela tinha muito o que fazer, era uma mulher de altíssimo nível,
exímia instrumentista.’’
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Em O Pessoal do Ceará, Amelinha divide com
Ednardo e Belchior os vocais em músicas que foram fundamentais na carreira
dos dois compositores, como Terral, Mucuripe, A Palo Seco, Como Nossos
Pais, Artigo 26 e Pavão Mysteriozo. Há ainda uma composição inédita de
cada um deles — Bossa em Palavrões, de Belchior, e Mote Tom e Radar, de
Ednardo. ‘‘Um disco feito com muito carinho’’, segundo o autor de Pavão
Mysteriozo. ‘‘É maravilhoso reencontrar dois grandes amigos e cantar com
eles. O afeto e a admiração mútua nos unem neste momento ímpar’’, diz uma
emocionada Amelinha, que ultimamente vinha se dedicando a gravar discos de
forró.
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Desejo antigo Forró, aliás, é o que não
falta no novo disco de Elba Ramalho, produzido por ela mesma em parceria
com Dominguinhos. ‘‘O projeto era um desejo antigo, mas uma coisa vai
puxando outra e acabou sendo adiado. Mas eu estava comprometida no meu
coração, não era nada conceitual. Queria cantar músicas conhecidas de
Gonzaga e outras não tão conhecidas, mas que estavam na minha memória’’,
conta Elba, que entrou em estúdio com toda concepção do disco na cabeça.
Tanto que ele ficou pronto em três dias. ‘‘Nisso sou craque. Acho muito
bom, um exercício que vai além do trabalho de intérprete. Por isso,
resolvi produzir. Fica mais com minha cara, a gente assume os
erros.’’ Por tabela, a cantora homenageou Dominguinhos ao convidá-lo
para dividir o disco com ela. ‘‘Ele se somou à minha arte com seu talento.
Para mim, é o sanfoneiro capaz de tocar Luiz Gonzaga com mais
naturalidade.’’ Tão natural quanto foi esse disco na carreira de Elba.
‘‘Que outra cantora poderia fazer um disco com músicas de Gonzaga? Gal
Costa? Marisa Monte? Não que não possam, mas não têm
disposição.’’ Embora seja bastante íntima da obra de Luiz Gonzaga, Elba
resolveu ouvir todos os discos do mestre antes de escolher o repertório.
‘‘Ouvia cinco CDs por dia. Eu me transportei para o Nordeste, ria mais do
que chorava, porque descobria gírias que nem lembrava mais. E pensei: ‘Tô
numa encrenca, porque é uma grande obra, que tem valsas, choros, e tenho a
limitação do CD’. Mas acredito que ao longo dos anos revisitarei a obra de
Gonzaga.’’
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Críticas
Elba Canta
Luiz Interpretações vigorosas
Apesar de diversificar o
repertório sempre que pode, Elba Ramalho traz o forró na veia, demonstra
intimidade com o gênero, que defende ardorosamente — ‘‘acho que minimizam
a estética da música nordestina, consideram música de segundo escalão. Mas
Luiz Gonzaga é tão importante quanto Tom Jobim’’. Portanto, não poderia
realmente ser outra cantora a prestar essa homenagem a Gonzagão. Além de
exibir seu domínio musical na concepção do disco, Elba interpreta o mestre
com propriedade, pondo ‘‘fogo na mistura’’ (como convém a um bom disco de
forró), e sabe dosar bem clássicos do repertório de Luiz Gonzaga com
curiosidades, como O Xamego da Guiomar, forró que se aproxima do samba e é
exemplo das influências do músico ao chegar ao Rio. E o incendiário
pot-pourri feito com Calango na Lacraia/Nega Zefa/Coco Xeem, com certeza,
vai fazer as festas juninas deste ano ainda mais animadas lá para os lados
de cima — dia 2 de junho, Ela começa em Caruaru (PE) sua tradicional
excursão junina.
O gosto da criação Serenidade do
visionário
Zé Ramalho estreou com uma obra-prima: o disco que
leva seu nome e traz Avohai, Vila do Sossego e Dança das Borboletas, entre
outras. Não decepcionou no segundo, A Peleja do Diabo com o Dono do Céu.
Mas, ao longo da carreira, parece ter ficado muitas vezes desnorteado
entre tomar novos rumos ou reafirmar a imagem de visionário da caatinga.
Esse impasse produziu altos e baixos na carreira do cantor e compositor
paraibano. Mas em O Gosto da Criação o artista deixa transparecer
serenidade que se reflete na qualidade das canções e na unidade do disco.
Zé Ramalho mostra coleção de baladas que, se não recupera a psicodelia e o
surrealismo de suas composições iniciais, não cai na banalidade — mesmo
quando ele canta os triviais problemas da relação amorosa, em Fissura. A
eficiente produção de Robertinho do Recife — com quem Zé Ramalho trabalha
pela quinta vez — e a participação de músicos como o violonista Yamandu
Costa e o sanfoneiro Dominguinhos são detalhes que valorizam o produto
final.
Pessoal do Ceará Modernidade e nostalgia
As
músicas escolhidas para compor o disco Pessoal do Ceará são todas tão
associadas a uma época que não há como não detectar a nostalgia que
permeia este encontro entre Amelinha, Belchior e Ednardo. Os arranjos de
Robertinho do Recife procuram fugir ao máximo dos originais e dar um ar de
modernidade a tais músicas, mas mantém-se um ar de saudade. No entanto,
isso não chega a ser defeito no disco, que serve como coletânea bastante
representativa daquele momento da música nordestina.
Até hoje não
houve reconhecimento da importância dessa geração para a história da
música brasileira: pela primeira vez, o Nordeste se apresentava
musicalmente ao resto do Brasil de forma diferente do típico forró, com
que Luiz Gonzaga conquistou o ‘‘sul’’ três décadas antes. Havia o
pastoril engajado de Ednardo, a poesia urbana e moderna de Belchior e o
timbre inconfundível de Amelinha, que o tempo não apagou e acaba sendo uma
das melhores coisas desse Pessoal do
Ceará.
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