Entrevista Jornal O Povo - Fortaleza/Ceará- 12 Abril 2004
Páginas Azuis - Jornalista Felipe Araújo

EDNARDO
Ednardo: no escuro dessa noite

Censurado e perseguido durante o regime militar, Ednardo revisita suas lembranças dos anos de chumbo, conta como foi agredido durante um show na Tabuba e acusa Fagner de ter boicotado o lançamento do disco da Massafeira pela gravadora CBS

Felipe Araújo
da Redação



[12 Abril 04h03min 2004]

Na paranóia totalitária do regime militar, em especial em sua fase pós-AI-5, o fantasma da subversão poderia estar encravado nos mais diferentes setores da vida nacional. No campo da música, em que já haviam florescido ''agitadores'' como Chico, Caetano, Gil e Vandré, mesmo as mais inocentes letras ou as mais descompromissadas capas de disco poderiam camuflar algum recôndito ultraje, que deveria ser sumariamente mutilado pela tesoura cega dos censores.

Vértice mais à esquerda na geometria política da santíssima trindade do Pessoal do Ceará (formada também por Belchior e Fagner), Ednardo sabe bem até que ponto poderiam chegar os excessos de tanta boçalidade. Consagrado nacionalmente com o sucesso da música ''Pavão Mysteriozo'', teve letras e discos censurados, sofreu agressões físicas, viu sua casa invadida em pleno período de distensão política e ainda passou pelo pesadelo das famosas prisões-relâmpago que tanto tiravam o sono de artistas e militantes de esquerda nos anos 70.

Convidado a dar uma entrevista a O POVO sobre as marcas que a ditadura deixou em sua trajetória, o autor de ''Enquanto engomo a calça'', ''Longarinas'' e outros clássicos da música cearense mostrou-se inicialmente reticente com a conversa. Preferia falar de coisas outras que não lhe remetessem novamente ao ''escuro dessa noite'', como canta em seu maior êxito comercial. Convencido, aprumou a memória e deixou as lembranças desaguarem em mais de uma hora de conversa, realizada por telefone na tarde da última quarta-feira.

Sempre simpático, Ednardo revisitou os espaços de resistência de músicos, artistas e intelectuais na Fortaleza do final dos anos 60, contou as agruras que sofreu nas mãos dos censores - que, entre outras, vetaram a letra de ''Terral'' e a capa original do disco O Azul e o Encarnado por conta dos versos de uma canção pastoril - e relembrou episódios como o fatídico festival realizado na praia da Tabuba, que lhe rendeu um amargo ''pedido de autógrafos''.

Entusiasta da Massafeira como o mais importante evento da música cearense nas últimas três décadas, também alfinetou o amigo Fagner por conta de sua restrição ao lançamento do disco do festival e puxou as orelhas das novas gerações da música cearense. ''Os novos artistas estão completamente sem foco'', alerta.

O POVO - Onde você estava e o que fazia quando eclodiu o golpe de 64?
Ednardo - Eu estava em Fortaleza e estudava para o vestibular de Engenharia. Em 1963, com 18 anos, já fazendo o cursinho pré-vestibular no Colégio Castelo Branco, eu fiz concurso para a Petrobras e passei. E lá fiquei durante uns sete anos na fábrica de asfalto que hoje é conhecida como Lubnor.

OP - Você já tentava a carreira como músico nessa época?
Ednardo - Eu já vinha fazendo música desde 1960. Em seguida, vieram os festivais nordestinos da canção, que eram promovidos pelos Diários Associados, através da TV Tupi. A gente tinha um ambiente muito bacana, porque é uma coisa que falta na cena atual, são ambientes onde as pessoas possam mostrar trabalhos próprios. Isso aí a gente tinha na TV Ceará, com Augusto Borges, o Gonzaga Vasconcelos, o Porque hoje é Sábado, o Show do Mercantil, o Estúdio 2. Foi nesse âmbito que a gente começou a fazer as coisas iniciais. Então, quando o golpe veio à tona eu já fazia música.

OP - Qual foi a sua primeira reação quando o golpe aconteceu?
Ednardo - Esse lance foi terrível para todos. Na época, eu não tinha uma consciência muito ampla do que estava acontecendo. Já trabalhava na Petrobras e fazia o curso de Engenharia Química na UFC. Mas ao mesmo tempo a gente notava que alguma coisa não estava certa, dava para perceber nos olhos dos pais da gente, dos amigos. Muitos amigos, inclusive estudantes universitários que também trabalhavam na fábrica de asfalto, alguns deles sumiram. Foi a época em que eu conheci o Bergson Farias, que era um líder estudantil da faculdade de Química, e o Genoíno, que hoje em dia é presidente nacional do PT. Então, eram os líderes estudantis que alertavam a gente para o que estava acontecendo. Havia também os festivais do DCE, enfim, aquela efervescência musical. O pessoal da Arquitetura tinha um Diretório Acadêmico com discos maravilhosos. Estavam lá Brandão, Fausto Nilo, Pepe, Ricardo Bezerra, que eram estudantes de arquitetura. Naquele tempo, você ter um disco era muito importante, era como se fosse a televisão de hoje. Você tinha, através do disco, informações. E o pessoal do Diretório Acadêmico da Arquitetura tinha a oportunidade de importar esses discos do eixo Sudeste. Então, era lá que a gente tinha a oportunidade de escutar o que estava acontecendo.

OP - Além do Diretório Acadêmico da Arquitetura, quais eram os outros espaços de resistência dos músicos na cidade?
Ednardo - Tinha muitos lugares. Eu ia sempre ao bar do Anísio porque eram os momentos em que eu tinha folga. Tinha também o Balão Vermelho, onde o Cláudio Pereira foi preso na frente de todo mundo. Nesse dia, estávamos eu, o Sérgio Pinheiro, o Belchior e um bocado de gente. Aí levaram o Cláudio Pereira e começou aquela gritaria: ''Que é isso? Que é que vocês vão fazer com o nosso amigo?''. E o cara dizia: ''É só para averiguações'' (risos). Inclusive ele foi libertado no dia seguinte. Eram prisões-relâmpago, de intimidação. Tinha também o Estoril. Mas o Bar do Anísio, na Beira-Mar, era o melhor local para os nossos encontros. Lá, como era um local público, quando a gente começava a tocar, tinha muita gente que vinha e sentava na mesa. Mas teve um momento muito delicado onde ninguém sabia quem era ninguém; a não ser quem eram os nossos.

OP - Vocês, portanto, tinham a consciência de que pessoas ligadas ao regime estavam infiltradas entre vocês.
Ednardo - O Augusto Pontes, meu parceiro, tinha um hai-kai maravilhoso que dizia assim: ''quando a mesa cresce, a cultura desaparece'' (risos). Era uma maneira dele mesmo sair da jogada. O Fausto tinha sido preso naquele congresso de Ibiúna e vez por outra aparecia por lá, mas todo travado. O Fausto parecia a pessoa que não queria falar com ninguém, falava muito baixinho, incorporando a repressão que foi exercida em cima deles. Tinha o Cláudio Pereira que era mais efusivo. O Guto Benevides vez por outra passava por lá e colocava umas meninas mostrando as bundas nas janelas do carro. Então, a gente tinha de um lado essa coisa estranha da ditadura, que a gente sabia que qualquer um podia sumir e desaparecer e ser perseguido; e por outro lado tinha também a alegria que aproximava aquele pessoal, o prazer de estar fazendo música, de estar fazendo arte e a consciência de que a gente não era massa de manobra de quem quer que fosse.

OP - Em 1971, você foi demitido da Petrobras. Isso teve alguma relação com o fato de você ser músico e freqüentar esses espaços de resistência?
Ednardo - É possível. Eu não sei. Tinha uma pessoa da administração da parte operacional da fábrica, que era um coronel e que sempre grilava muito com o fato de eu usar cabelos compridos e fazer música. Ele chegou a me suspender várias vezes. Cada vez que eu aparecia na televisão ou ia para um festival ele me suspendia uma semana. Aí, teve um tempo em que ele chegou a me chamar lá e dizer: ''Olha, você tem que cortar o seu cabelo''. Aí eu falei: ''Olha, no dia em que você me provar que o tamanho do meu cabelo está influindo na qualidade do trabalho que eu estou realizando aqui, eu corto''. Eu devo ter falado umas coisas meio absurdas para esse cara. E não deu outra, bicho, dentro de pouco tempo eu fui gentilmente, entre aspas, convidado a sair de lá. Além disso, um ou dois companheiros de trabalho que tinham umas idéias mais à esquerda da transação no meio universitário sumiram e até hoje nunca apareceram. Muitos anos depois, esse mesmo coronel me falou que tinha feito um bem para mim. Eu chego a acreditar que sim.

OP - O seu primeiro disco solo, trazia a canção ''Pavão Mysteriozo'', com a qual, você já chegou a afirmar em outras entrevistas, você fazia uma metáfora com a situação do País naquela época. Como se dava essa metáfora?
Ednardo - Essa música tem mais de trinta, quarenta regravações. E uma coisa que eu aprendi ao longo desse tempo é que devo ter feito essa música de acordo com o que sentia na época. Mas quanto mais as pessoas gravam e regravam cada uma dá um novo entendimento diferente para isso aí. Claro que, na minha concepção, eu peguei o lance do romance de cordel e fiz um paralelo em relação àquela situação. Inclusive, eu cunhei a frase ''no escuro dessa noite'' para fazer um paralelo porque no cordel o que estava escrito era a impossibilidade de um jovem alcançar o amor da amada. Mas os índios do Xingu adotaram essa música como ritual sagrado para as danças deles. O pessoal do GLS botou essa música como hino, dois anos atrás, da Parada Gay de São Paulo, que juntou um milhão e poucas pessoas. Aí eu fico imaginando por que é que eu devo sintetizar a importância de uma música dessa somente em função do fato da repressão da ditadura. A música é maior do que isso tudo.

OP - Mas quando o disco foi lançado você chegou a receber alguma ameaça de censura?
Ednardo - Isso aí é meio difícil de falar porque você vai me lembrar de coisas terríveis. Na verdade, a primeira repressão que a gente teve foi no primeiro disco logo, O Pessoal do Ceará. Por incrível que pareça eles implicaram com ''Terral''.

OP - Por que?
Ednardo - Porque tinha ''Na praia fazendo amor''. Não podia falar ''fazendo amor''. O que eles fizeram foi chamar a gente lá na Polícia Federal para explicar música por música. Nesse tempo a gente já morava em São Paulo. Então, foi uma coisa chata, angustiante. Aí me foi sugerido o seguinte, troca a frase ''fazendo amor'' por ''falando amor''. Foi o primeiro grilo deles e acho até o mais ridículo. Eu falei ''tudo bem, troca, coloca falando amor no disco'', embora em todos os shows eu cantasse ''fazendo amor''. Depois o disco foi num crescendo, as músicas obtiveram aceitação pública e a marcação ficou maior. Tanto que no disco seguinte é que o negócio começou a pesar porque a gravadora nem sequer divulgou o disco.

OP - Como assim?
Ednardo - O disco foi lançado em 1974 e a gravadora não se dedicou a distribuir e divulgar o disco nos principais meios de comunicação. Resultado, o disco só fez sucesso em 1976, quando o Walter Avancini, que era diretor da Globo, junto com o Dias Gomes, que era o idealizador do folhetim Saramandaia, escutaram essa música por acaso na casa de uma amigo nosso lá em São Paulo. Eles acharam que a música tinha tudo a ver com a novela, que buscava uma ambiência com o universo fantástico brasileiro, essa coisa da possibilidade de utilizar as nossas lendas junto com a realidade e também com o tempo negro da ditadura.

OP - Mas o disco chegou a ser censurado?
Ednardo - Depois que um lance desse caiu nas graças da Rede Globo, o pessoal não teve como boicotar mais porra nenhuma, aí não tinha mais nem que eu ser chamado para explicar o que significava aquilo. Agora, em compensação, no disco posterior, vieram duas porradas. Porque você fica visado pelo sucesso, principalmente naqueles tempos de ditadura. No disco seguinte, Berro, que eu lancei em 1976 junto com o sucesso da música ''Pavão Mysteriozo'', eles implicaram com todas as músicas do disco. A música ''Artigo 26'', por exemplo, me valeu uma prisão relâmpago, uma coisa muito desagradável e muito terrível. Foi num festival aí na praia da Tabuba, em 76.

OP - Como foi esse episódio?
Ednardo - A música ''Pavão Mysteriozo'' já era sucesso no País todo. Então, o Sabino Henrique, que é um jornalista de Fortaleza e trabalhava muito junto ao governo naquela época, tinha o projeto de fazer um festival numa praia. Eu fui convidado e cheguei lá no dia do show. Eu olhava para o lado e havia uma quantidade absurda de pessoas. Do outro lado, uma quantidade absurda de policiais. Parecia que aquilo ali era uma praça de guerra e que aqueles jovens iam fazer uma revolução. A polícia começou a distribuir porrada em todo mundo. As meninas queriam fazer xixi na beira da praia e os policiais colocavam cachorro em cima. Teve uma amiga minha que foi arrancado um naco da perna dela por uma cão policial. Na hora em que eu subi no palco, comecei a cantar ''Terral'', ''Pavão Mysteriozo'', aquelas coisas que o povo queria. Mas quando comecei a cantar o ''Artigo 26'', coincidentemente ou não, eu vi dois jovens, uma menina e um menino, sabe aqueles hippies da época, querendo subir no palco. Aí o pessoal pegou esses dois adolescentes e desceu o cassete em cima deles. Eu interrompi a música e disse: ''Olha, bicho, esse evento aqui é para a gente comemorar a alegria, a felicidade de estarmos cantando juntos''. Aí eu comecei a cantar o ''Artigo 26'', que fala em liberdade, fraternidade e igualdade. Quando eu termino de fazer o show e desço do palco, tem uma roda enorme de policiais e um cara diz assim: ''O delegado quer um autógrafo seu''...

OP - E o que aconteceu?
Ednardo - Ah, bicho, não gosto nem de lembrar dessas coisas. Porque tudo aquilo que eu estava imaginando que mais dia menos dia sobraria para mim em termos de repressão ia acontecer logo na minha terra. Eles me levaram para um porão que tinha lá. Eu nunca tinha visto uma coisa dessas, porque era na beira da praia e tinha um porão dentro de um lance lá. Fizeram uma roda de policial e eu não escutei coisas boas não. Foram as ameaças mais absurdas que eu ouvi a minha integridade física. Eu tentava sair da roda e eles me davam porrada de um lado e diziam: ''Fica aqui nessa roda, bicho, tu vai aparecer amanhã boiando aqui nessa praia da Tabuba''. Foi quando entrou a esposa do Sabino Henrique e ela falou veementemente com os caras. ''Olha, vocês tenham cuidado com o que vocês estão fazendo porque esse festival aqui tem o aval do governador''. Naquele tempo, se eu não me engano, era tempo do Adauto Bezerra. ''Olha, o cara é convidado especial do governador e vocês vão ter que se entender diretamente com ele''. Foi aí que limpou a barra. Mas ainda mereci uma escolta até o hotel. Eu não gosto de lembrar muito disso não.

OP - Que outros músicos da tua geração tiveram músicas censuradas?
Ednardo - Muita gente teve música censurada. Eu sei que o Belchior teve. Mas eu posso te dizer assim com mais certeza das minhas porque naquela época quando você tinha uma música censurada era como quem tinha lepra ou como quem era tuberculoso. Ninguém dizia para ninguém. Até para que essas coisas não se disseminassem assim ''fulano de tal é um censurado''. Se houvesse isso, ninguém mais, nenhuma gravadora ou editora ou rádio ou sistema de comunicação ia fazer mais coisa nenhuma com aquele cara. Agora, a gente podia fazer as mágicas, tipo mudar de nome como o Chico Buarque fez, mudando para Julinho da Adelaide. E várias músicas escaparam dessa forma. A gente também trocava os títulos das músicas e misturava as letras. Várias passavam dessa maneira porque o pessoal censurava pelo título e pelo autor. Elas vinham reprovadas da censura federal, a gente mudava o título e quando ela ia de novo a gente tentava fazer com que ela caísse nas mãos de um outro censor, que muitas vezes deixava a música passar.

OP - Que música você chegou a trocar de título para poder passar pela censura?
Ednardo - ''Berro'', por exemplo. Que era ''Do boi só se perde o berro'' e não passou. E depois eu coloquei só ''Berro'' e fiz algumas alterações na letra. Outra estratégia era fazer o seguinte: você abandonava uma música e pegava todo o teor dela e colocava em outra, com outras palavras. Em 77, duas músicas minhas de parceria com o Fausto Nilo foram proibidas sequer de passar pela censura, era ''O Novo ABC'' e ''Avencas de Maio''. A gravadora já estava tão sofisticada nesse aspecto que tinha um cara lá dentro que dizia assim ''essa pode, essa não pode''. Chegaram a censurar inclusive a arte gráfica do Fausto Nilo para o disco O Azul e o Encarnado, que tinha aquele desenho clássico do Leonardo da Vinci, um homem nu dentro da quadratura do círculo. E do outro lado tinha o desenho de dois carneiros, escrito com uma frase de pastoril, uma coisa do Nordeste: ''Mais eu não quero a tua riqueza, que abismou a natureza, aquela estrela que irradia há de ser minha luz e guia''.

OP - Por que eles cismaram com essa frase?
Ednardo - A tradução desses caras para isso era muito louca. ''Que estrela é essa?'' e tal. Então, foi muito difícil. Eu não tinha nem chegado a falar isso aí para o Fausto porque ela já era grilado pra cassete. Uma das músicas era ''O novo ABC'', em que ele falava assim: ''Com A se escreve amor e arma, com B se escreve bola e bala, com C se escreve Casa e Cela''. Aí eu fui desenvolvendo essa transação, quase que o alfabeto todo e isso não passou lá.

OP - Que outras marcas o regime deixou na tua trajetória como artista?
Ednardo - Sei não (risos). Teve tantas. No show de lançamento do próprio O Azul e o Encarnado, feito a convite dos estudantes na PUC (Pontifícia Universidade Católica-SP), no Teatro TUCA (Teatro da Universidade Católica), a universidade foi invadida por tropas da PM comandadas pelo coronel Erasmo Dias e general Torres de Melo. Enquanto uma batia outra soprava, com direito à ''corredor polonês''. Os estudantes passavam levando porradas e choques elétricos de aparelho de imobilização instantânea. Quem não conseguisse andar, recebia chutes de ''estimulação'', alunas grávidas também foram submetidas a este ''tratamento''. Teve também uma invasão lá na minha casa, que foi terrível. Na década de 80, eu estava tentando liberar o disco Massafeira na CBS e estava aqui no Rio de Janeiro. A minha mulher, Rosane, estava grávida de oito meses do Gabriel, a minha filha Joana tinha cinco anos. O pessoal invadiu minha casa em Fortaleza e quebrou tudo da minha discoteca, da minha biblioteca, tirou discos, fitas, inclusive de parcerias, coisas que eu tinha feito, gravações caseiras, letras de música. Eles trancaram minha mulher e minha filha na cozinha, enquanto reviravam a casa alegando que era naquele ambiente que se realizavam as reuniões da Massafeira. Meu telefone foi grampeado e a gente podia escutar a captação até pelo meu amplificador de guitarra. Foi um momento muito difícil. Reviver tudo isso me leva a uma reflexão de tristeza com relação a essa coisa. Principalmente quando eu vi que, na época de tentativa de liberação do disco da Massafeira, o Fagner, que era uma espécie de diretor de um selo da CBS, começou a implicar com esse LP, o que resultou no engavetando do disco por mais de um ano.

OP - Por que o Fagner se colocou contra o lançamento do disco?
Ednardo - Ele participou do evento, achou um barato, mas começou a implicar que aquilo ali seria uma coisa contrária aos interesses da gravadora. Acho que seria uma coisa contrária aos interesses dele. Eu vi muitas entrevistas do Fagner onde ele dizia que o Pessoal do Ceará, segundo ele falava, ''essa história é morta para mim. Parece que é um papo comercial''. Nunca foi. Na realidade, quem cunhou a expressão Pessoal do Ceará foram os estudantes da Escola de Comunicação e Artes da USP e o título pegou. Agora, imagina o Fagner falando sobre papo comercial, quando ele na verdade é a pessoa mais à vontade nessa área. Ao mesmo tempo, ainda tinha um projeto inventado de última hora, o SORO, que na realidade é Orós ao contrário, que não teve nenhum respaldo popular e com conteúdo arquitetado na tentativa de substituir ou de se contrapor à Massafeira. Isso daí talvez tenha sido um divisor das águas, que mais me distanciou, falando claramente depois de tanto tempo. A Massafeira foi um evento maravilhoso. Hoje, passado mais de 25 anos, não houve nada igual.

OP - E como é a tua relação com o Fagner hoje?
Ednardo - É tranqüila. Acho até que o maior prejudicado foi o próprio Fagner. Depois disso ele fez uma opção declarada para atender solicitações de mercado. Ele deve ter pago esse sucesso a um alto custo, com a sua própria alma artística. Mas eu sou muito amigo do Fagner e acho inclusive que essa tentativa dele agora junto com Zeca Baleiro é muito boa. Pega uma pessoa nova para ensinar de novo o caminho. Isso é muito bom, é uma coisa que ele não quis ver na época.

OP - Qual a importância da Massafeira dentro do contexto político daquela época?
Ednardo - A Massafeira foi uma das mais ousadas e seminais iniciativas de mostrar ao país o que estava acontecendo em termos de arte contemporânea espontânea e enraizada. Foi uma grande feira cultural que juntou música, artes plásticas, literatura, teatro, dança, cinema, artesanato e culinária. Eram mais de 300 artistas reunidos no Theatro José de Alencar, em março de 1979. Depois, foram mais de 200 músicos na gravação do disco duplo no Rio de Janeiro. Em seguida, mais de 150 artistas se juntaram para lançar o disco duplo no Theatro José de Alencar, em outubro de 1980. Muito pouco se falou no Ceará e no Brasil da importância da Massafeira. Também não consta em jornais que policiais armados invadiram o Hotel Santa Tereza, no Rio de Janeiro, onde todos artistas da Massafeira durante as gravações do disco eram hóspedes, incluindo eu e minha família. Eles arrastaram o Lúcio Ricardo pelo chão puxando pelos cabelos, no restaurante do hotel, sob a alegação não comprovada de porte de maconha, e o deixaram de cueca dentro de uma cela na delegacia com vários marginais. Se não fosse minha imediata ação junto com Rodger Rogério para retirá-lo daquela situação não se saberia como ficaria a integridade física dele.

OP - Apesar do golpe, ou talvez justamente por conta disso, a sua geração foi se agrupando e conseguiu vingar fora dos limites do Estado. Como você observa hoje as novas gerações da música cearense?
Ednardo - Eu leio os jornais do Ceará todos os dias e percebo que os novos artistas cearenses estão completamente sem foco. Estão cantando em bares, não estão mais mostrando o trabalho deles. Quem são os produtores dos eventos musicais hoje no Ceará? O que eles estão priorizando? Qual é o foco? Um é o Fortal, não tenho nada contra quem ganha dinheiro. Outro é o Ceará Music, também não tenho nada contra quem ganha dinheiro. Mas tem algum cearense no meio dessa transação aí? Quando botam, no máximo, colocam assim, ''Palco Nativo''. Parece até que eu estou morando no Haiti. Eu vejo coisas tão malucas aí. Acho que esse pessoal poderia ganhar dinheiro com a gente também. Quantos anos faz que eu não faço um show grande por aí? Ou o Belchior? O Fagner faz porque, sem papas na língua, ele teve uns acertos com o governo do Estado. Que ele faça bom proveito, mas que não pense nisso daí só como uma coisa de posse dele, assim o rei da cocada preta do Ceará. Então, eu já tinha que falar essas coisas todas e coloquei tudo pra fora. Que Deus nos proteja, viu? (Risos).


Discografia

Meu corpo minha embalagem todo gasto na viagem/ Ednardo e o Pessoal do Ceará (1973) com Rodger Rogério e Teti
O romance do Pavão Mysteriozo (1974)
Berro (1976)
O Azul e o Encarnado (1977)
Cauim (1978)
Ednardo (1979)
Massafeira Livre (1980) projeto coletivo
Imã (1980)
Terra da luz (1982)
Ednardo (1983)
Libertree (1985)
Rubi (1991) ao vivo
Única pessoa (2000)
Pessoal do Ceará (2002) com Belchior e Amelinha