EDNARDO Ednardo: no escuro dessa
noite
Censurado e perseguido durante o regime militar, Ednardo
revisita suas lembranças dos anos de chumbo, conta como foi agredido
durante um show na Tabuba e acusa Fagner de ter boicotado o
lançamento do disco da Massafeira pela gravadora
CBS
Felipe Araújo da
Redação
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Abril 04h03min 2004]
Na paranóia totalitária do
regime militar, em especial em sua fase pós-AI-5, o fantasma da
subversão poderia estar encravado nos mais diferentes setores da
vida nacional. No campo da música, em que já haviam florescido
''agitadores'' como Chico, Caetano, Gil e Vandré, mesmo as mais
inocentes letras ou as mais descompromissadas capas de disco
poderiam camuflar algum recôndito ultraje, que deveria ser
sumariamente mutilado pela tesoura cega dos censores.
Vértice mais à esquerda na geometria política da santíssima
trindade do Pessoal do Ceará (formada também por Belchior e Fagner),
Ednardo sabe bem até que ponto poderiam chegar os excessos de tanta
boçalidade. Consagrado nacionalmente com o sucesso da música ''Pavão
Mysteriozo'', teve letras e discos censurados, sofreu agressões
físicas, viu sua casa invadida em pleno período de distensão
política e ainda passou pelo pesadelo das famosas prisões-relâmpago
que tanto tiravam o sono de artistas e militantes de esquerda nos
anos 70.
Convidado a dar uma entrevista a O POVO
sobre as marcas que a ditadura deixou em sua trajetória, o
autor de ''Enquanto engomo a calça'', ''Longarinas'' e outros
clássicos da música cearense mostrou-se inicialmente reticente com a
conversa. Preferia falar de coisas outras que não lhe remetessem
novamente ao ''escuro dessa noite'', como canta em seu maior êxito
comercial. Convencido, aprumou a memória e deixou as lembranças
desaguarem em mais de uma hora de conversa, realizada por telefone
na tarde da última quarta-feira.
Sempre simpático, Ednardo
revisitou os espaços de resistência de músicos, artistas e
intelectuais na Fortaleza do final dos anos 60, contou as agruras
que sofreu nas mãos dos censores - que, entre outras, vetaram a
letra de ''Terral'' e a capa original do disco O Azul e o
Encarnado por conta dos versos de uma canção pastoril - e
relembrou episódios como o fatídico festival realizado na praia da
Tabuba, que lhe rendeu um amargo ''pedido de autógrafos''.
Entusiasta da Massafeira como o mais
importante evento da música cearense nas últimas três décadas,
também alfinetou o amigo Fagner por conta de sua restrição ao
lançamento do disco do festival e puxou as orelhas das novas
gerações da música cearense. ''Os novos artistas estão completamente
sem foco'', alerta.
O POVO - Onde você estava
e o que fazia quando eclodiu o golpe de 64? Ednardo
- Eu estava em Fortaleza e estudava para o vestibular de
Engenharia. Em 1963, com 18 anos, já fazendo o cursinho
pré-vestibular no Colégio Castelo Branco, eu fiz concurso para a
Petrobras e passei. E lá fiquei durante uns sete anos na fábrica de
asfalto que hoje é conhecida como Lubnor.
OP -
Você já tentava a carreira como músico nessa época?
Ednardo - Eu já vinha fazendo música desde 1960.
Em seguida, vieram os festivais nordestinos da canção, que eram
promovidos pelos Diários Associados, através da TV Tupi. A gente
tinha um ambiente muito bacana, porque é uma coisa que falta na cena
atual, são ambientes onde as pessoas possam mostrar trabalhos
próprios. Isso aí a gente tinha na TV Ceará, com Augusto Borges, o
Gonzaga Vasconcelos, o Porque hoje é Sábado, o
Show do Mercantil, o Estúdio 2. Foi
nesse âmbito que a gente começou a fazer as coisas iniciais. Então,
quando o golpe veio à tona eu já fazia música.
OP
- Qual foi a sua primeira reação quando o golpe aconteceu?
Ednardo - Esse lance foi terrível para todos. Na
época, eu não tinha uma consciência muito ampla do que estava
acontecendo. Já trabalhava na Petrobras e fazia o curso de
Engenharia Química na UFC. Mas ao mesmo tempo a gente notava que
alguma coisa não estava certa, dava para perceber nos olhos dos pais
da gente, dos amigos. Muitos amigos, inclusive estudantes
universitários que também trabalhavam na fábrica de asfalto, alguns
deles sumiram. Foi a época em que eu conheci o Bergson Farias, que
era um líder estudantil da faculdade de Química, e o Genoíno, que
hoje em dia é presidente nacional do PT. Então, eram os líderes
estudantis que alertavam a gente para o que estava acontecendo.
Havia também os festivais do DCE, enfim, aquela efervescência
musical. O pessoal da Arquitetura tinha um Diretório Acadêmico com
discos maravilhosos. Estavam lá Brandão, Fausto Nilo, Pepe, Ricardo
Bezerra, que eram estudantes de arquitetura. Naquele tempo, você ter
um disco era muito importante, era como se fosse a televisão de
hoje. Você tinha, através do disco, informações. E o pessoal do
Diretório Acadêmico da Arquitetura tinha a oportunidade de importar
esses discos do eixo Sudeste. Então, era lá que a gente tinha a
oportunidade de escutar o que estava acontecendo.
OP
- Além do Diretório Acadêmico da Arquitetura, quais eram os
outros espaços de resistência dos músicos na cidade?
Ednardo - Tinha muitos lugares. Eu ia sempre ao
bar do Anísio porque eram os momentos em que eu tinha folga. Tinha
também o Balão Vermelho, onde o Cláudio Pereira foi preso na frente
de todo mundo. Nesse dia, estávamos eu, o Sérgio Pinheiro, o
Belchior e um bocado de gente. Aí levaram o Cláudio Pereira e
começou aquela gritaria: ''Que é isso? Que é que vocês vão fazer com
o nosso amigo?''. E o cara dizia: ''É só para averiguações''
(risos). Inclusive ele foi libertado no dia seguinte. Eram
prisões-relâmpago, de intimidação. Tinha também o Estoril. Mas o Bar
do Anísio, na Beira-Mar, era o melhor local para os nossos
encontros. Lá, como era um local público, quando a gente começava a
tocar, tinha muita gente que vinha e sentava na mesa. Mas teve um
momento muito delicado onde ninguém sabia quem era ninguém; a não
ser quem eram os nossos.
OP - Vocês, portanto,
tinham a consciência de que pessoas ligadas ao regime estavam
infiltradas entre vocês. Ednardo - O Augusto
Pontes, meu parceiro, tinha um hai-kai maravilhoso que dizia assim:
''quando a mesa cresce, a cultura desaparece'' (risos). Era uma
maneira dele mesmo sair da jogada. O Fausto tinha sido preso naquele
congresso de Ibiúna e vez por outra aparecia por lá, mas todo
travado. O Fausto parecia a pessoa que não queria falar com ninguém,
falava muito baixinho, incorporando a repressão que foi exercida em
cima deles. Tinha o Cláudio Pereira que era mais efusivo. O Guto
Benevides vez por outra passava por lá e colocava umas meninas
mostrando as bundas nas janelas do carro. Então, a gente tinha de um
lado essa coisa estranha da ditadura, que a gente sabia que qualquer
um podia sumir e desaparecer e ser perseguido; e por outro lado
tinha também a alegria que aproximava aquele pessoal, o prazer de
estar fazendo música, de estar fazendo arte e a consciência de que a
gente não era massa de manobra de quem quer que fosse.
OP - Em 1971, você foi demitido da Petrobras.
Isso teve alguma relação com o fato de você ser músico e freqüentar
esses espaços de resistência? Ednardo - É
possível. Eu não sei. Tinha uma pessoa da administração da parte
operacional da fábrica, que era um coronel e que sempre grilava
muito com o fato de eu usar cabelos compridos e fazer música. Ele
chegou a me suspender várias vezes. Cada vez que eu aparecia na
televisão ou ia para um festival ele me suspendia uma semana. Aí,
teve um tempo em que ele chegou a me chamar lá e dizer: ''Olha, você
tem que cortar o seu cabelo''. Aí eu falei: ''Olha, no dia em que
você me provar que o tamanho do meu cabelo está influindo na
qualidade do trabalho que eu estou realizando aqui, eu corto''. Eu
devo ter falado umas coisas meio absurdas para esse cara. E não deu
outra, bicho, dentro de pouco tempo eu fui gentilmente, entre aspas,
convidado a sair de lá. Além disso, um ou dois companheiros de
trabalho que tinham umas idéias mais à esquerda da transação no meio
universitário sumiram e até hoje nunca apareceram. Muitos anos
depois, esse mesmo coronel me falou que tinha feito um bem para mim.
Eu chego a acreditar que sim.
OP - O seu
primeiro disco solo, trazia a canção ''Pavão Mysteriozo'', com a
qual, você já chegou a afirmar em outras entrevistas, você fazia uma
metáfora com a situação do País naquela época. Como se dava essa
metáfora? Ednardo - Essa música tem mais de
trinta, quarenta regravações. E uma coisa que eu aprendi ao longo
desse tempo é que devo ter feito essa música de acordo com o que
sentia na época. Mas quanto mais as pessoas gravam e regravam cada
uma dá um novo entendimento diferente para isso aí. Claro que, na
minha concepção, eu peguei o lance do romance de cordel e fiz um
paralelo em relação àquela situação. Inclusive, eu cunhei a frase
''no escuro dessa noite'' para fazer um paralelo porque no cordel o
que estava escrito era a impossibilidade de um jovem alcançar o amor
da amada. Mas os índios do Xingu adotaram essa música como ritual
sagrado para as danças deles. O pessoal do GLS botou essa música
como hino, dois anos atrás, da Parada Gay de São Paulo, que juntou
um milhão e poucas pessoas. Aí eu fico imaginando por que é que eu
devo sintetizar a importância de uma música dessa somente em função
do fato da repressão da ditadura. A música é maior do que isso tudo.
OP - Mas quando o disco foi lançado você
chegou a receber alguma ameaça de censura? Ednardo
- Isso aí é meio difícil de falar porque você vai me lembrar
de coisas terríveis. Na verdade, a primeira repressão que a gente
teve foi no primeiro disco logo, O Pessoal do Ceará.
Por incrível que pareça eles implicaram com ''Terral''.
OP - Por que? Ednardo -
Porque tinha ''Na praia fazendo amor''. Não podia falar ''fazendo
amor''. O que eles fizeram foi chamar a gente lá na Polícia Federal
para explicar música por música. Nesse tempo a gente já morava em
São Paulo. Então, foi uma coisa chata, angustiante. Aí me foi
sugerido o seguinte, troca a frase ''fazendo amor'' por ''falando
amor''. Foi o primeiro grilo deles e acho até o mais ridículo. Eu
falei ''tudo bem, troca, coloca falando amor no disco'', embora em
todos os shows eu cantasse ''fazendo amor''. Depois o disco foi num
crescendo, as músicas obtiveram aceitação pública e a marcação ficou
maior. Tanto que no disco seguinte é que o negócio começou a pesar
porque a gravadora nem sequer divulgou o disco.
OP
- Como assim? Ednardo - O disco foi
lançado em 1974 e a gravadora não se dedicou a distribuir e divulgar
o disco nos principais meios de comunicação. Resultado, o disco só
fez sucesso em 1976, quando o Walter Avancini, que era diretor da
Globo, junto com o Dias Gomes, que era o idealizador do folhetim
Saramandaia, escutaram essa música por acaso na casa
de uma amigo nosso lá em São Paulo. Eles acharam que a música tinha
tudo a ver com a novela, que buscava uma ambiência com o universo
fantástico brasileiro, essa coisa da possibilidade de utilizar as
nossas lendas junto com a realidade e também com o tempo negro da
ditadura.
OP - Mas o disco chegou a ser
censurado? Ednardo - Depois que um lance desse
caiu nas graças da Rede Globo, o pessoal não teve como boicotar mais
porra nenhuma, aí não tinha mais nem que eu ser chamado para
explicar o que significava aquilo. Agora, em compensação, no disco
posterior, vieram duas porradas. Porque você fica visado pelo
sucesso, principalmente naqueles tempos de ditadura. No disco
seguinte, Berro, que eu lancei em 1976 junto com o
sucesso da música ''Pavão Mysteriozo'', eles implicaram com todas as
músicas do disco. A música ''Artigo 26'', por exemplo, me valeu uma
prisão relâmpago, uma coisa muito desagradável e muito terrível. Foi
num festival aí na praia da Tabuba, em 76.
OP
- Como foi esse episódio? Ednardo - A
música ''Pavão Mysteriozo'' já era sucesso no País todo. Então, o
Sabino Henrique, que é um jornalista de Fortaleza e trabalhava muito
junto ao governo naquela época, tinha o projeto de fazer um festival
numa praia. Eu fui convidado e cheguei lá no dia do show. Eu olhava
para o lado e havia uma quantidade absurda de pessoas. Do outro
lado, uma quantidade absurda de policiais. Parecia que aquilo ali
era uma praça de guerra e que aqueles jovens iam fazer uma
revolução. A polícia começou a distribuir porrada em todo mundo. As
meninas queriam fazer xixi na beira da praia e os policiais
colocavam cachorro em cima. Teve uma amiga minha que foi arrancado
um naco da perna dela por uma cão policial. Na hora em que eu subi
no palco, comecei a cantar ''Terral'', ''Pavão Mysteriozo'', aquelas
coisas que o povo queria. Mas quando comecei a cantar o ''Artigo
26'', coincidentemente ou não, eu vi dois jovens, uma menina e um
menino, sabe aqueles hippies da época, querendo subir no palco. Aí o
pessoal pegou esses dois adolescentes e desceu o cassete em cima
deles. Eu interrompi a música e disse: ''Olha, bicho, esse evento
aqui é para a gente comemorar a alegria, a felicidade de estarmos
cantando juntos''. Aí eu comecei a cantar o ''Artigo 26'', que fala
em liberdade, fraternidade e igualdade. Quando eu termino de fazer o
show e desço do palco, tem uma roda enorme de policiais e um cara
diz assim: ''O delegado quer um autógrafo seu''...
OP
- E o que aconteceu? Ednardo - Ah, bicho,
não gosto nem de lembrar dessas coisas. Porque tudo aquilo que eu
estava imaginando que mais dia menos dia sobraria para mim em termos
de repressão ia acontecer logo na minha terra. Eles me levaram para
um porão que tinha lá. Eu nunca tinha visto uma coisa dessas, porque
era na beira da praia e tinha um porão dentro de um lance lá.
Fizeram uma roda de policial e eu não escutei coisas boas não. Foram
as ameaças mais absurdas que eu ouvi a minha integridade física. Eu
tentava sair da roda e eles me davam porrada de um lado e diziam:
''Fica aqui nessa roda, bicho, tu vai aparecer amanhã boiando aqui
nessa praia da Tabuba''. Foi quando entrou a esposa do Sabino
Henrique e ela falou veementemente com os caras. ''Olha, vocês
tenham cuidado com o que vocês estão fazendo porque esse festival
aqui tem o aval do governador''. Naquele tempo, se eu não me engano,
era tempo do Adauto Bezerra. ''Olha, o cara é convidado especial do
governador e vocês vão ter que se entender diretamente com ele''.
Foi aí que limpou a barra. Mas ainda mereci uma escolta até o hotel.
Eu não gosto de lembrar muito disso não.
OP -
Que outros músicos da tua geração tiveram músicas censuradas?
Ednardo - Muita gente teve música censurada. Eu
sei que o Belchior teve. Mas eu posso te dizer assim com mais
certeza das minhas porque naquela época quando você tinha uma música
censurada era como quem tinha lepra ou como quem era tuberculoso.
Ninguém dizia para ninguém. Até para que essas coisas não se
disseminassem assim ''fulano de tal é um censurado''. Se houvesse
isso, ninguém mais, nenhuma gravadora ou editora ou rádio ou sistema
de comunicação ia fazer mais coisa nenhuma com aquele cara. Agora, a
gente podia fazer as mágicas, tipo mudar de nome como o Chico
Buarque fez, mudando para Julinho da Adelaide. E várias músicas
escaparam dessa forma. A gente também trocava os títulos das músicas
e misturava as letras. Várias passavam dessa maneira porque o
pessoal censurava pelo título e pelo autor. Elas vinham reprovadas
da censura federal, a gente mudava o título e quando ela ia de novo
a gente tentava fazer com que ela caísse nas mãos de um outro
censor, que muitas vezes deixava a música passar.
OP
- Que música você chegou a trocar de título para poder
passar pela censura? Ednardo - ''Berro'', por
exemplo. Que era ''Do boi só se perde o berro'' e não passou. E
depois eu coloquei só ''Berro'' e fiz algumas alterações na letra.
Outra estratégia era fazer o seguinte: você abandonava uma música e
pegava todo o teor dela e colocava em outra, com outras palavras. Em
77, duas músicas minhas de parceria com o Fausto Nilo foram
proibidas sequer de passar pela censura, era ''O Novo ABC'' e
''Avencas de Maio''. A gravadora já estava tão sofisticada nesse
aspecto que tinha um cara lá dentro que dizia assim ''essa pode,
essa não pode''. Chegaram a censurar inclusive a arte gráfica do
Fausto Nilo para o disco O Azul e o Encarnado, que
tinha aquele desenho clássico do Leonardo da Vinci, um homem nu
dentro da quadratura do círculo. E do outro lado tinha o desenho de
dois carneiros, escrito com uma frase de pastoril, uma coisa do
Nordeste: ''Mais eu não quero a tua riqueza, que abismou a natureza,
aquela estrela que irradia há de ser minha luz e guia''.
OP - Por que eles cismaram com essa frase?
Ednardo - A tradução desses caras para isso era
muito louca. ''Que estrela é essa?'' e tal. Então, foi muito
difícil. Eu não tinha nem chegado a falar isso aí para o Fausto
porque ela já era grilado pra cassete. Uma das músicas era ''O novo
ABC'', em que ele falava assim: ''Com A se escreve amor e arma, com
B se escreve bola e bala, com C se escreve Casa e Cela''. Aí eu fui
desenvolvendo essa transação, quase que o alfabeto todo e isso não
passou lá.
OP - Que outras marcas o regime
deixou na tua trajetória como artista? Ednardo -
Sei não (risos). Teve tantas. No show de lançamento do próprio
O Azul e o Encarnado, feito a convite dos estudantes
na PUC (Pontifícia Universidade Católica-SP), no Teatro TUCA (Teatro
da Universidade Católica), a universidade foi invadida por tropas da
PM comandadas pelo coronel Erasmo Dias e general Torres de Melo.
Enquanto uma batia outra soprava, com direito à ''corredor
polonês''. Os estudantes passavam levando porradas e choques
elétricos de aparelho de imobilização instantânea. Quem não
conseguisse andar, recebia chutes de ''estimulação'', alunas
grávidas também foram submetidas a este ''tratamento''. Teve também
uma invasão lá na minha casa, que foi terrível. Na década de 80, eu
estava tentando liberar o disco Massafeira na CBS e
estava aqui no Rio de Janeiro. A minha mulher, Rosane, estava
grávida de oito meses do Gabriel, a minha filha Joana tinha cinco
anos. O pessoal invadiu minha casa em Fortaleza e quebrou tudo da
minha discoteca, da minha biblioteca, tirou discos, fitas, inclusive
de parcerias, coisas que eu tinha feito, gravações caseiras, letras
de música. Eles trancaram minha mulher e minha filha na cozinha,
enquanto reviravam a casa alegando que era naquele ambiente que se
realizavam as reuniões da Massafeira. Meu telefone foi
grampeado e a gente podia escutar a captação até pelo meu
amplificador de guitarra. Foi um momento muito difícil. Reviver tudo
isso me leva a uma reflexão de tristeza com relação a essa coisa.
Principalmente quando eu vi que, na época de tentativa de liberação
do disco da Massafeira, o Fagner, que era uma espécie
de diretor de um selo da CBS, começou a implicar com esse LP, o que
resultou no engavetando do disco por mais de um ano.
OP - Por que o Fagner se colocou contra o
lançamento do disco? Ednardo - Ele participou do
evento, achou um barato, mas começou a implicar que aquilo ali seria
uma coisa contrária aos interesses da gravadora. Acho que seria uma
coisa contrária aos interesses dele. Eu vi muitas entrevistas do
Fagner onde ele dizia que o Pessoal do Ceará, segundo ele falava,
''essa história é morta para mim. Parece que é um papo comercial''.
Nunca foi. Na realidade, quem cunhou a expressão Pessoal do Ceará
foram os estudantes da Escola de Comunicação e Artes da USP e o
título pegou. Agora, imagina o Fagner falando sobre papo comercial,
quando ele na verdade é a pessoa mais à vontade nessa área. Ao mesmo
tempo, ainda tinha um projeto inventado de última hora, o
SORO, que na realidade é Orós ao contrário, que não
teve nenhum respaldo popular e com conteúdo arquitetado na tentativa
de substituir ou de se contrapor à Massafeira. Isso daí talvez tenha
sido um divisor das águas, que mais me distanciou, falando
claramente depois de tanto tempo. A Massafeira foi um
evento maravilhoso. Hoje, passado mais de 25 anos, não houve nada
igual.
OP - E como é a tua relação com o
Fagner hoje? Ednardo - É tranqüila. Acho até que o
maior prejudicado foi o próprio Fagner. Depois disso ele fez uma
opção declarada para atender solicitações de mercado. Ele deve ter
pago esse sucesso a um alto custo, com a sua própria alma artística.
Mas eu sou muito amigo do Fagner e acho inclusive que essa tentativa
dele agora junto com Zeca Baleiro é muito boa. Pega uma pessoa nova
para ensinar de novo o caminho. Isso é muito bom, é uma coisa que
ele não quis ver na época.
OP - Qual a
importância da Massafeira dentro do contexto político
daquela época? Ednardo - A Massafeira
foi uma das mais ousadas e seminais iniciativas de mostrar
ao país o que estava acontecendo em termos de arte contemporânea
espontânea e enraizada. Foi uma grande feira cultural que juntou
música, artes plásticas, literatura, teatro, dança, cinema,
artesanato e culinária. Eram mais de 300 artistas
reunidos no Theatro José de Alencar, em março de 1979. Depois, foram
mais de 200 músicos na gravação do disco duplo no Rio de Janeiro. Em
seguida, mais de 150 artistas se juntaram para lançar o disco duplo
no Theatro José de Alencar, em outubro de 1980. Muito
pouco se falou no Ceará e no Brasil da importância da
Massafeira. Também não consta em jornais que policiais
armados invadiram o Hotel Santa Tereza, no Rio de Janeiro, onde
todos artistas da Massafeira durante as gravações do
disco eram hóspedes, incluindo eu e minha família. Eles arrastaram o
Lúcio Ricardo pelo chão puxando pelos cabelos, no restaurante do
hotel, sob a alegação não comprovada de porte de maconha, e o
deixaram de cueca dentro de uma cela na delegacia com vários
marginais. Se não fosse minha imediata ação junto com Rodger Rogério
para retirá-lo daquela situação não se saberia como ficaria a
integridade física dele.
OP - Apesar do golpe,
ou talvez justamente por conta disso, a sua geração foi se agrupando
e conseguiu vingar fora dos limites do Estado. Como você observa
hoje as novas gerações da música cearense? Ednardo
- Eu leio os jornais do Ceará todos os dias e percebo que os
novos artistas cearenses estão completamente sem foco. Estão
cantando em bares, não estão mais mostrando o trabalho deles. Quem
são os produtores dos eventos musicais hoje no Ceará? O que eles
estão priorizando? Qual é o foco? Um é o Fortal, não tenho nada
contra quem ganha dinheiro. Outro é o Ceará Music, também não tenho
nada contra quem ganha dinheiro. Mas tem algum cearense no meio
dessa transação aí? Quando botam, no máximo, colocam assim, ''Palco
Nativo''. Parece até que eu estou morando no Haiti. Eu vejo coisas
tão malucas aí. Acho que esse pessoal poderia ganhar dinheiro com a
gente também. Quantos anos faz que eu não faço um show grande por
aí? Ou o Belchior? O Fagner faz porque, sem papas na língua, ele
teve uns acertos com o governo do Estado. Que ele faça bom proveito,
mas que não pense nisso daí só como uma coisa de posse dele, assim o
rei da cocada preta do Ceará. Então, eu já tinha que falar essas
coisas todas e coloquei tudo pra fora. Que Deus nos proteja, viu?
(Risos).
Discografia
Meu
corpo minha embalagem todo gasto na viagem/ Ednardo e
o Pessoal do Ceará (1973) com Rodger Rogério e Teti
O romance do Pavão Mysteriozo (1974)
Berro (1976) O Azul e o Encarnado
(1977) Cauim (1978) Ednardo
(1979) Massafeira Livre (1980) projeto
coletivo Imã (1980) Terra da luz
(1982) Ednardo (1983) Libertree
(1985) Rubi (1991) ao vivo Única
pessoa (2000) Pessoal do Ceará (2002) com
Belchior e Amelinha
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