Jornal Cruzeiro do Sul - Sorocaba / SP, 29 de setembro de 2002

 Cena do Filme Luzia Homem - Ednardo e Cláudia OhanaMÚSICA
Ednardo e a arte de driblar a 'simplória desinformação'



Adriane Mendes / JCS

Injustiçado pela grande massa que, apesar da vasta obra, insiste em vê-lo apenas como o cantor de "Pavão Mysteriozo", o cantor e compositor Ednardo não titubeia ao afirmar que a música brasileira se mantém criativa (a mais criativa do mundo ao seu ver), ainda que a mídia mostre o que bem entende, e diga-se de passagem, nem sempre o melhor.

Em março deste ano, Ednardo lançou o CD "Pessoal do Ceará", fruto do trabalho conjunto com Belchior e Amelinha. Numa entrevista concedida exclusivamente para o Mais Cruzeiro, via e-mail, o cantor e compositor cearense, que também já atuou como músico para peças teatrais e filmes (participou também como ator em "Luzia Homem"), critica a desinformação da mídia e a qualidade da TV brasileira, avalia o cenário político (classificado por ele como "caótico") e mostra que sua vida e seu trabalho estão e vão muito além da canção que o tornou conhecido para o grande público. Confira.

Como nasceu o projeto "Ednardo, Amelinha e Belchior"?

Fomos convidados pela gravadora Warner-Continental e pelo produtor Robertinho de Recife, mas, bem antes deste fato, já havíamos realizados vários shows em conjunto - eu, o Belchior, Fagner, Amelinha - e havíamos conversado sobre a possibilidade de realizarmos disco em conjunto. O que até chegou a ser idealizado na BMG, com Ednardo, Fagner e Belchior, mas ficou em compasso de espera. A Warner foi objetiva e nos contratou para que realizássemos o projeto dessa forma: Ednardo, Amelinha e Belchior.

No que diz respeito à peculiaridade e à vaidade de cada um, como foi a convivência em estúdio?

Temos como atitude profissional, manter nossos egos artísticos reservados. Principalmente quando trata-se de projeto envolvendo ao mesmo tempo vários artistas, em que cada qual tem suas peculiaridades criativas e existenciais. Nosso objetivo principal é manter a boa energia que terá como resultante o disco. Sabemos que, ao levar com nossas vozes, as músicas oferecidas às pessoas que irão nos escutar, a responsabilidade é grande e não comporta tempo para dispersões pessoais. Além do mais, existem outros momentos nos quais podemos, se necessário, conversar sobre assuntos e acertos éticos e estéticos, se houverem. Este disco do "Pessoal do Ceará", com nossa participação, tem alta energia de emissão boa, positiva, criativa, aceita pelo público de todo o Brasil, mesmo sem nenhum apoio da gravadora na divulgação. E este fato se deve principalmente às excelentes músicas que ali estão registradas e à forma amiga, profissional e de boa convivência estendida a todos os músicos e produtores, inclusive da gravadora.

O novo disco tem apenas duas canções inéditas, mas parece que você teria material inédito suficiente para fazer um disco só de lançamentos. Você pretende lançar novo trabalho solo neste ou no próximo ano?

Este CD do "Pessoal do Ceará" tem duas inéditas, opção da produção e da gravadora. Poderia ter todas inéditas, não estamos incluídos na pseudocrise de criatividade, tecla tão batida da mass mídia, com a qual tentam explicar desacertos da indústria fonográfica em relação à música brasileira, enquanto lançam discos com grupos e artistas pré-fabricados, por força do jabá, esse monstro criado pelas gravadoras. Claro que isso não é regra geral, existem outros artistas que continuam fazendo o que sabem melhor realizar: músicas e letras com respaldo popular, de qualidade, sem forçar a barra das execuções públicas pagas a título de divulgação. Tenho sim, farto material de músicas e letras, suficientes para fazer vários discos de lançamentos inéditos. E, mesmo constatando a demanda reprimida, estamos trabalhando para lançar as novas músicas. Minha produção está estudando propostas concretas.

Existe a impressão de que o "Pessoal do Ceará" não teria bom entrosamento com o Fagner, que é o que melhor teve e mantém acesso à mídia. Isso é real?

Fagner também é "Pessoal do Ceará". Esta estória foi criada na mídia, da mesma forma que inventaram anteriormente que cearenses eram contra baianos. Li pequenas e venenosas matérias noticiando que nós teríamos rejeitado a participação de Fagner neste projeto do novo disco do "Pessoal do Ceará". Isto é um absurdo, porque chapa de maneira estranha o universo artístico e o fato de sermos diferentes em nossa criatividade. Basta ver que, há algum tempo atrás, Fagner era desfenestrado por grande parte da mídia jornalística musical, por ter feito a opção pessoal e artística de orientar sua carreira para sucessos fáceis e descartáveis a fim de se manter a qualquer custo na mídia. Outros, que não se "rendiam" ao esquema, eram "festejados" como os "dinossauros" que iriam desaparecer. Da mesma forma Belchior foi atacado como aquele artista que se repetia eternamente em todos seus discos e Ednardo, de outra maneira, também pejorativa, era considerado como o compositor de "Pavão Mysteriozo", música gravada em 1973. Sobre este disco, "Pessoal do Ceará", nós, Ednardo, Belchior e Amelinha, estávamos contratados pela Warner-Continental. Fagner, contratado da BMG, saiu de lá e foi para a Sony neste período. Estas gravadoras e/ou o produtor Robertinho de Recife, não conseguiram, ou não quiseram, incluir ou liberar a possibilidade de Fagner participar do disco. Ou ele próprio não se dispôs ou não teve condições. Mudanças entre gravadoras são muitas vezes problemáticas quanto aos projetos anteriores dos artistas e foge a nossa alçada.

Ednardo, você ficou com o estigma de ser o "cantor do Pavão Mysteriozo". Até que ponto isso influenciou em sua carreira? Existe alguma mágoa por isso?

Tenho mais de 250 músicas gravadas, em discos, trilhas de cinema, teatro, etc., realizo shows por todo o Brasil, o público canta esta e muitas outras e as identifica como sucessos representativos de minha carreira, sem o carimbo pretendido por parte da mídia. Não me sinto com o "estigma" referido. Esta abordagem é falha e se origina de press releases antigos, não atualizados, que tentam perpetuar na identificação do sucesso de início de carreira, como se fosse o mais importante de um trabalho musical que realizo há 30 anos em constantes evoluções. Talvez, achem cômodo a simplória desinformação, mas em setores bem informados da mídia, este fato não ocorre.

Esta música tem identificação bastante ampla e quantidade significativa de regravações nacionais e internacionais. Cada intérprete fornece sua própria versão, mas muitas outras de meu repertório musical também têm este mesmo tratamento de respeito, aceitação e identificação. Não carrego mágoa, isso não influência meu trabalho que está bem acima. Estou ocupado com muitas atividades, vivendo e trabalhando no que sempre faço, os que veiculam informações do passado como se fossem do presente é que precisam se informar das outras 249 músicas gravadas e de outras 50 que estão em processo de lançamento.

Tem muita coisa ruim sendo executada nas rádios e também mostrada pelas TVs. A que você atribui isso: falta de criatividade ou é a mídia que mostra apenas o que lhe interessa?

Tem mesmo, mas também tem algumas poucas e boas que ainda aparecem, muitas outras boas ou melhores estão sendo ocultadas pelo esquema que à revelia pública foi implantado, de forma explícita ou velada e todos nós sabemos que não é por falta de criatividade dos artistas brasileiros. A música brasileira é, comprovadamente, umas das que têm maior pujança, força e diversidade rítmica e musical aliada à poesia das letras que, sem dúvida, relatam o novo mundo de forma panorâmica como quase nenhuma outra.

Isso seria um reflexo de que a população continua sendo manipulada?

Como ouvinte e telespectador eu já não gostaria de grande parte do que nos empurram para consumir nos canais e estações comerciais (que na realidade são concessões públicas para informação que, no mínimo, deveriam ter dignidade ao atender legítimas ansiedades e necessidades do público, tanto no que toca às informações básicas, quanto ao mínimo de diversão e arte a que todos temos direito). Estamos sendo tratados como idiotas consumidores do mais baixo nível de programações de imagens e sons destinados a uma grande massa, como nunca se viu ou ouviu antes no Brasil, manipulados sim, por quem imagina que é isto que o povo gosta. Eu me respeito e faço parte do povo, minha condição de artista não me distancia, ao contrário muito mais me aproxima, também tenho filhos e quero o melhor para todos. E, atenção! Não falo de forma moralista e sim querendo melhor qualidade. É absurdo a formatação que estão nos impingindo à força.

A volta dos festivais poderia representar uma retomada para que o povo voltasse a ter contato com um trabalho mais de qualidade?

Depende de quais festivais, existem vários espalhados por todo o país, nenhum deles com alcance de mídia nacional. Em alguns realmente acontecem coisas interessantes, mas quando algum é formatado neste nível de mídia nacional, gravadoras e emissoras de TV já os controlam de tal forma, que fica difícil encontrar verdade democrática de oportunidades. Mas, de qualquer forma, sempre acredito que pelas brechas dos filtros, muita coisa boa pode vir à tona.

O artista em geral tem o poder de ser formador de opiniões e não é à toa que muitos são procurados para trabalho político (alguns o fazem por ideologia). Você já atuou para a campanha de alguém? Aceitaria apenas por ideologia, ou por vantagens contratuais?

Minhas músicas e letras se definem por si mesmas, nunca precisei aliar idéias, ética, estética ou minha existência pessoal e artística a partidos políticos ou ideologias. Claro que, como cidadão, tenho minhas preferências e posso pontualmente escolher e acreditar em alguns políticos, independente de suas cores, mas é coisa cada vez mais difícil e rara nas atuais conjunturas. Não preciso de ideologias para viver, o artista deve estar muito acima de filiações partidárias, conchavos políticos, tráficos de influências, mas se for convidado para formar opinião através de sua arte, que o saiba fazer por credibilidade a quem oferece seu apoio e antes se informar muito bem para ponderar sua escolha. Nunca para obter vantagens contratuais ou equivalentes ideológicos, porque estas cargas pesadas quase sempre são acompanhadas de outros ônus.

Como você define o cenário político do País? Quais suas expectativas?

Caótico, precisa rapidamente ser redimensionado, repensado, modificado para melhor, os quadros que estão aí em quase todas as áreas, não servem mais para o Brasil de hoje, já faz muito tempo. Tenho, como todo o povo brasileiro, que está consciente da atual gravidade das situações gerais básicas, grandes expectativas nesta próxima eleição. É um momento crucial em que teremos oportunidade de modificar pelo voto o País, escolhendo outras formas de governabilidade, nosso próprio modelo, não mais atrelado de forma tão servil a interesses mesquinhos que sempre diminuíram nossa importância diante de todas as nações. É de vital importância que nos reconheçamos em nossa dignidade pela dimensão real de uma grande nação, de importância fundamental, vou ajudar com meu voto unitário, o voto de um cidadão, não acredito em revoluções pré-fabricadas, não acredito em soluções mágicas de equipes econômicas quase todas elas com o rabo preso em outros interesses, também não acredito na continuidade desta situação que de tão ruim basta.

[ Redação Cruzeiro do Sul ]