O sonho de
reunir os expoentes do chamado Pessoal do Ceará, em palco e/ou em disco, é
antigo. Mas sempre foi impedido por divergências que iam desde o fato de
pertencerem a gravadoras diferentes até agendas conflitantes e brigas de egos.
Depois que Alceu Valença, Elba Ramalho, Geraldo Azevedo e Zé Ramalho realizaram
com sucesso o projeto Grande Encontro, os boatos sobre a união de
Fagner, Belchior, Ednardo e Amelinha ficaram mais fortes e eles realmente
chegaram a se aproximar.
Há alguns anos, milhares de pessoas puderam
conferir a apresentação de Fagner, Belchior e Ednardo em plena Praça do
Ferreira. Quem viu pode guardar na memória porque tão cedo o fato voltará a se
repetir. Foi então que o produtor Robertinho de Recife, parceiro de muitos
trabalhos de Fagner, convocou Ednardo, Belchior e Amelinha e o resultado chegou
às lojas com o CD Pessoal do Ceará (WEA Music), contendo 12
regravações e duas faixas inéditas: ''Bossa em palavrões'', de Belchior, e
''Mote tom e radar'', de Ednardo.
A reportagem do
Vida & Arte resolveu botar os três cearenses para falar. Há
duas semanas enviou e-mail com perguntas para os três protagonistas do projeto.
Boa parte delas foi igual para todos e apenas uma era específica para cada um.
Ednardo respondeu de pronto. Belchior enviou suas respostas no final da semana
passada por fax. Na última segunda-feira, a redação recebeu um fax da produção
de Amelinha com 19 frases de cunho religioso e um pequeno texto de onde
resgatamos o que acreditamos ser algumas respostas para as perguntas propostas.
Confira a entrevista:
O POVO - Até que ponto este novo
Pessoal do Ceará teve inspiração no Grande Encontro de outros
nordestinos ilustres da mesma geração - Alceu, Elba, Geraldinho e Zé
Ramalho?
Ednardo - Não há 'inspiração' no
Grande Encontro dos amigos pernambucanos e paraibanos, pois nosso
primeiro disco - Meu Corpo Minha Embalagem Todo Gasto na Viagem
(1972) - já tinha esta característica de reunião e encontro artístico nos mesmos
moldes. Neste novo disco do Pessoal do Ceará, em nova formatação artística,
fomos chamados pelo produtor artístico Robertinho de Recife, em conjunto com o
produtor Hélio Santos, que nos apresentaram o projeto delineado junto à
gravadora, com nossos nomes e o perfil das músicas solicitadas que inclui
sucessos e duas músicas inéditas.
Belchior - Acho que o
encontro deste novo Pessoal do Ceará teve inspiração em todos os
grandes encontros de artistas, nordestinos ou não, e está sob a influência
eficaz de todas as boas estrelas. Os encontros de artistas da MPB de sempre - o
dos Doces Bárbaros, o de Chico e Bethânia, o de Geraldo Azevedo, Alceu, Zé
Ramalho e Elba e outros similares - vão ser sempre bons exemplos e modelos para
que continuem acontecendo. No caso especial do novo Pessoal do
Ceará, o encontro de que se trata, vai confirmar a força comum do
trabalho cancioneiro de compositores e intérpretes contemporâneos e da mesma
geração criativa e, por outro lado, incrementar a presença conjunta de artistas
cujos trabalhos individuais estão soberbamente conhecidos e consagrados.
Acrescente-se a isso o fato de que, para o novo público que a MPB vem reunindo,
deverá ser uma surpresa esteticamente importante, reconhecer em trabalhos
individuais a comunidade do sentimento de geração que os inspirou.
OP - Como foi a convivência em estúdio para a elaboração
deste novo Pessoal do Ceará? A escolha do repertório? E por que esta opção por
tantas regravações e somente duas inéditas?
Ednardo -
Ao realizarmos este novo disco, o que nos movimentou foi a oportunidade de nos
encontrarmos novamente, o prazer de estarmos juntos com a consciência do caminho
percorrido por cada um. A escolha do repertório foi tranqüila, visto estarmos
atendendo ao projeto solicitado, que inclui regravações de sucessos que, por
opção da gravadora, foi objetivado em minhas músicas e nas músicas de Belchior,
com músicas inéditas de cada um. Este repertório todo cantado em trio, duetos e
solos. Se fosse solicitado fazer tudo inédito também faríamos, temos bastante
músicas novas. Mas como está também é muito bacana, porque uma das
características é a releitura de sucessos individuais feitas grupalmente. Além
do mais o público de todo o Brasil sempre solicitava em nossos shows que fosse
gravado novo disco do Pessoal do Ceará reunindo alguns de seus componentes
cantando estas músicas, no que atendemos também ao público.
Belchior - A convivência no estúdio não me pareceu em nada
dificultosa, apesar de muitas ausências minhas para cumprimento de compromissos
profissionais. A escolha do repertório foi habilmente feita pela sabedoria e
experiência criativa de Robertinho do Recife e, quanto a mim, tive a felicidade
de ver diversas canções de minha autoria gravadas, pela primeira vez, por
Amelinha, com a competência e a maturidade afetuosa que tem hoje na voz e na
presença pública. As previsíveis e inevitáveis discussões, que se desencadeiam
em oportunidade dessas, provieram da diversidade de nossos interesses estéticos
e, quem sabe, do alvoroço e da excitação de cantarmos pela primeira vez juntos,
mas foram sabiamente mediadas e resolvidas pela prudência e amizades de
Robertinho. Fizemos novas canções que deram mostras da continuidade de nossos
processos criativos e que, juntas às regravações de canções que fizemos,
longamente esperadas em nossas vozes, compuseram uma antologia fonograficamente
notável e de imediata e prazerosa aceitação pelo público. Apreciar o presente
trabalho de outro ponto de vista me pareceria aplicar o método de observação
crítica impressionista a realizações do Cubismo e ou do Surrealismo.
OP - Fagner foi uma ausência sentida neste projeto Pessoal do
Ceará 2002?
Ednardo - Gostaríamos que participasse.
Primeiro porque, de forma natural, Fagner é identificado pelo público e mídia,
como pertecente à nossa turma boa, inclusive havíamos idealizado projeto neste
sentido de gravarmos juntos, o que continua no ar. Segundo porque em seus
trabalhos iniciais existe link de confluências nos quais nos identificamos. Por
outro lado ele faz questão de parecer que não é Pessoal do Ceará, no que há de
mais pleno e luminoso na identificação. Li várias declarações públicas
demonstrando esta falta de vontade dele, que ao meu ver é obtusa, pois em um
livro sobre seu trabalho realizado por Evangê Costa sob sua autorização, o
título ou um dos subtítulos é ''Fagner e o Pessoal do Ceará''. A propósito,
algumas matérias em jornais noticiam que ele foi rejeitado pelos colegas e
portanto excluído deste disco. De nossa parte, Ednardo, Amelinha e Belchior, não
houve nenhum veto. É necessário entender que assuntos entre diferentes
gravadoras que mantêm contratos de exclusividades com seus artistas, que podem
existir motivos empresariais e comerciais que fogem à nossa alçada artística de
decisões.
Belchior - Raimundo Fagner continua sendo, de
todos nós, o que mais encarna e personifica a figura poderosa e esperta de quem
sabe lidar com a mídia. Experimentado e excepcionalmente bem sucedido nos
embates públicos da vida de artista contemporâneo, Raimundo Fagner confirma o
talento de grande intérprete que revelou dezenas de canções e de artistas novos,
especialmente do Ceará. A ausência de Raimundo Fagner é fundamentalmente sentida
não apenas em simples projetos fonográficos e de show-business como esse, mas
toda vez em que a música popular brasileira, especialmente aquela feita em nosso
Estado, precisar exercer a criatividade e o talento e unir nossa poesia e música
agreste à beleza e à expressividade diante do público. Continuo, modestamente, a
invejar-lhe o sucesso e a combatividade.
Amelinha - Amo o
Fagner, que é meu compadre, meu irmão. Já cantei várias vezes com ele, foi quem
produziu meu primeiro disco, e cantarei com muita alegria quantas vezes forem
necessárias. Além do quê, sou sua grande admiradora.
OP - Até
que ponto vocês identificam influências da turma do Pessoal do Ceará nos
trabalhos de compositores da nova geração no Brasil todo?
Ednardo - Assim como aprendemos com muitos mestres, temos
consciência que também passamos estes ensinamentos e acrescentamos os nossos com
características próprias, que podem ser encontrados em muitos segmentos da
música brasileira e também no exterior. É só abrir os ouvidos e escutar.
Belchior - Feliz ou infelizmente, não consigo identificar
muitas influências do assim chamado Pessoal do Ceará no trabalho dos demais
compositores e intérpretes brasileiros da geração passada ou dessa. O que me
impressionou sempre foi o altíssimo interesse que outros criadores e cantores
manifestaram por nossas canções, a ponto de terem gravado centenas delas.
Deploro apenas a ausência de uma fortuna crítica mais rica e mais condizente com
a qualidade e quantidade do que fizemos e continuamos a fazer. Pessoalmente, me
sinto bastante orgulhoso e confortado com o fato de não ter alunos nem
seguidores, o que confirma certa individualidade irrepetível do trabalho que
venho apresentando. Para não falar em que prefiro um toque de originalidade e
invenção àquela inspiração que consiste apenas em inspirar os outros. Além do
mais, não gosto de ser seguido: nem por minha mulher, nem pela polícia de
costumes e, muito menos, como o Senhor Jesus, por amados discípulos...
OP - A turma do Pessoal do Ceará ainda tem um mito muito
forte em nível local. E ainda rola aquele sentimento ''depois deles (vocês), não
apareceu mais ninguém'', isto é, nenhum outro artista cearense conseguiu
alcançar sucesso nacional. Por que você acha que isso acontece?
Ednardo - Ainda temos e vamos ter muito mais e sempre, o que
dizem que é mito, traduzimos como respeito por parte do público, local, nacional
e internacional, com merecido reconhecimento às nossas músicas que atravessam
gerações com a mesma importância e valor artístico. Penso que apareceu muita
gente boa com obra significativa, mas se ainda não há visibilidade desta nova
geração musical, compete a eles próprios se organizarem e buscar espaços que nem
sempre estão só em Fortaleza. Se querem alcançar nível nacional, parece que uma
tomada de atitude neste sentido é fundamental. Não vou falar de regras do como
fazer, porque não existem. Pensando de forma macro, artistas de humor cearense
realizaram um grande boom em nível nacional. Estão aí Tom
Cavalcante, Falcão e outros dignos representantes que demonstram que botando o
pé na estrada, muita coisa pode acontecer. Lógico que sempre haverá o filtro
natural, mas a turma dos músicos desta nova geração precisa não se acomodar a
situações que os incomodam.
Belchior - As condições de
criação e de realização pública do trabalho artístico por que passou nossa
geração, tão diferentes das de hoje; o heroísmo, exigido de nós, que nos levou a
deixar nossas escolas, nossos empregos e aventurar-nos pelo 'Sul Maravilha' em
busca do sucesso; e a vitória final do espírito criador, de que sempre se
orgulhará o assim chamado Pessoal do Ceará, devem, por certo, ter incentivado e
mantido o mito em torno de tantos nomes, que à exceção, talvez, do meu, decidida
e clamorosamente merecem. De qualquer forma, o talento continua e o ambiente
artístico da cidade oferece, hoje, meios mais eficazes de formação de nome na
música popular, até mesmo pelo aparecimento de público consumidor local
interessado no respeito da qualidade artística superior. Mas não é verdade que
nenhum outro artista cearense tenha conseguido sucesso nacional depois de nós. O
grande Falcão, com seu talento, inteligência, irreverência, humor e
originalidade tipicamente cearenses, mereceu o prestígio e o estrelato,
provando, definitivamente, o contrário de nossa desesperança do que viria após o
surgimento e a consolidação artística de Fagner, Ednardo, Belchior e Fausto
Nilo, ou seja, do famigerado ''quarteto em si''.
OP - Para
Ednardo: como único integrante do disco Pessoal do Ceará original a
participar deste novo projeto, quais os paralelos que você encontra nestes dois
projetos, 30 anos depois?
Ednardo - Belchior e
Amelinha também fazem parte do Pessoal do Ceará. No primeiro disco, juntamente
com Rodger Rogério e Teti, também cantamos músicas minhas, do Rodger, Fagner,
Humberto Teixeira, José Evangelista (Dedé), Ricardo Bezerra, Augusto Pontes,
Tânia Araújo, com a presença maravilhosa da Teti interpretando várias músicas.
Neste novo, incluímos além das músicas de Belchior, das minhas, também Fagner,
Vicente Lopes e Climério (que igualmente ao Brandão, é piauiense de nascimento e
cearense de vivências e de coração). Com a presença luminosa de Amelinha e sua
voz única, traçar paralelos entre os dois discos limita expectativas embora não
seja nossa pretensão criá-las, mas tenho certeza que todos nós sonhamos com a
possibilidade de ampliarmos nosso canto de forma plural, sem esquecer nossas
individualidades artísticas, o que torna nossa proposta mais abrangente. E o
público, na realidade o grande maestro, é quem melhor poderá exercer a função de
julgar a validade de nossa arte.
OP - Para Belchior: você se
sente cobrado pelos artistas cearenses por mais apoio na hora de alavancar suas
carreiras nacionalmente, principalmente pelo fato do ser proprietário de uma
gravadora, a Cameratti? Qual conselho você costuma dar para artistas que
gostariam de conquistar reconhecimento nacional?
Belchior
- O fato de ser sócio de uma gravadora não me trouxe nem me traz, de
nenhum modo, o constrangimento da cobrança excessiva de apoio artístico à
geração mais nova. Há companhias fonográficas, até mesmo no Ceará, muito maiores
e mais importantes que a minha e, além disso, mais apropriadas para o lançamento
dos novos da região. Os interessados, com a sabedoria e a experiência que lhes
dá o famoso mercado, com o apoio e incentivo das novas Leis de Cultura e dos
novos meios da modernidade, sabem disso muito bem. Aliás, não tenho ouvido nem
sentido cobrança alguma, de nenhum dos bons e grandes artistas novos, cuja
obstinação e talento respeito e admiro. É muito pouco o que eu poderia fazer por
eles: na certa, menos do que conseguiriam incrementar por si mesmos. De minha
parte, continuo na expectativa animada de que apareçam e cresçam; de que
encontrem ou abram seu próprio caminho. Se pudesse dar-lhes um conselho seria o
de não aceitarem conselhos de gente como eu. Não me sigam; eu não sou novela e
também estou perdido. Façam como eu; inventem. Ou melhor, não façam como eu:
inventem!
OP - Para Amelinha: o projeto explorou basicamente
os repertórios autorais de Ednardo e Belchior, deixando seu próprio repertório
de fora. Por que isto aconteceu?
Amelinha -
Participei desse projeto para homenagear a minha terra através das músicas de
Belchior e Ednardo, assim como poderei a qualquer momento estar com outros
valores cearenses, sejam nacionalmente conhecidos ou não.
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