Jornal O POVO - Fortaleza, 24 de Abril de 2002 - Caderno Diversão e Arte
 
MÚSICA

O reencontro do Pessoal

A tentativa de unir os expoentes do Pessoal do Ceará resultou no CD que traz Ednardo, Amelinha e Belchior cantando juntos pela primeira vez, mas deixou Fagner de fora

Luciano Almeida Filho
da Redação




O sonho de reunir os expoentes do chamado Pessoal do Ceará, em palco e/ou em disco, é antigo. Mas sempre foi impedido por divergências que iam desde o fato de pertencerem a gravadoras diferentes até agendas conflitantes e brigas de egos. Depois que Alceu Valença, Elba Ramalho, Geraldo Azevedo e Zé Ramalho realizaram com sucesso o projeto Grande Encontro, os boatos sobre a união de Fagner, Belchior, Ednardo e Amelinha ficaram mais fortes e eles realmente chegaram a se aproximar.

Há alguns anos, milhares de pessoas puderam conferir a apresentação de Fagner, Belchior e Ednardo em plena Praça do Ferreira. Quem viu pode guardar na memória porque tão cedo o fato voltará a se repetir. Foi então que o produtor Robertinho de Recife, parceiro de muitos trabalhos de Fagner, convocou Ednardo, Belchior e Amelinha e o resultado chegou às lojas com o CD Pessoal do Ceará (WEA Music), contendo 12 regravações e duas faixas inéditas: ''Bossa em palavrões'', de Belchior, e ''Mote tom e radar'', de Ednardo.

A reportagem do Vida & Arte resolveu botar os três cearenses para falar. Há duas semanas enviou e-mail com perguntas para os três protagonistas do projeto. Boa parte delas foi igual para todos e apenas uma era específica para cada um. Ednardo respondeu de pronto. Belchior enviou suas respostas no final da semana passada por fax. Na última segunda-feira, a redação recebeu um fax da produção de Amelinha com 19 frases de cunho religioso e um pequeno texto de onde resgatamos o que acreditamos ser algumas respostas para as perguntas propostas. Confira a entrevista:


O POVO - Até que ponto este novo Pessoal do Ceará teve inspiração no Grande Encontro de outros nordestinos ilustres da mesma geração - Alceu, Elba, Geraldinho e Zé Ramalho?

Ednardo - Não há 'inspiração' no Grande Encontro dos amigos pernambucanos e paraibanos, pois nosso primeiro disco - Meu Corpo Minha Embalagem Todo Gasto na Viagem (1972) - já tinha esta característica de reunião e encontro artístico nos mesmos moldes. Neste novo disco do Pessoal do Ceará, em nova formatação artística, fomos chamados pelo produtor artístico Robertinho de Recife, em conjunto com o produtor Hélio Santos, que nos apresentaram o projeto delineado junto à gravadora, com nossos nomes e o perfil das músicas solicitadas que inclui sucessos e duas músicas inéditas.

Belchior - Acho que o encontro deste novo Pessoal do Ceará teve inspiração em todos os grandes encontros de artistas, nordestinos ou não, e está sob a influência eficaz de todas as boas estrelas. Os encontros de artistas da MPB de sempre - o dos Doces Bárbaros, o de Chico e Bethânia, o de Geraldo Azevedo, Alceu, Zé Ramalho e Elba e outros similares - vão ser sempre bons exemplos e modelos para que continuem acontecendo. No caso especial do novo Pessoal do Ceará, o encontro de que se trata, vai confirmar a força comum do trabalho cancioneiro de compositores e intérpretes contemporâneos e da mesma geração criativa e, por outro lado, incrementar a presença conjunta de artistas cujos trabalhos individuais estão soberbamente conhecidos e consagrados. Acrescente-se a isso o fato de que, para o novo público que a MPB vem reunindo, deverá ser uma surpresa esteticamente importante, reconhecer em trabalhos individuais a comunidade do sentimento de geração que os inspirou.

OP - Como foi a convivência em estúdio para a elaboração deste novo Pessoal do Ceará? A escolha do repertório? E por que esta opção por tantas regravações e somente duas inéditas?

Ednardo - Ao realizarmos este novo disco, o que nos movimentou foi a oportunidade de nos encontrarmos novamente, o prazer de estarmos juntos com a consciência do caminho percorrido por cada um. A escolha do repertório foi tranqüila, visto estarmos atendendo ao projeto solicitado, que inclui regravações de sucessos que, por opção da gravadora, foi objetivado em minhas músicas e nas músicas de Belchior, com músicas inéditas de cada um. Este repertório todo cantado em trio, duetos e solos. Se fosse solicitado fazer tudo inédito também faríamos, temos bastante músicas novas. Mas como está também é muito bacana, porque uma das características é a releitura de sucessos individuais feitas grupalmente. Além do mais o público de todo o Brasil sempre solicitava em nossos shows que fosse gravado novo disco do Pessoal do Ceará reunindo alguns de seus componentes cantando estas músicas, no que atendemos também ao público.

Belchior - A convivência no estúdio não me pareceu em nada dificultosa, apesar de muitas ausências minhas para cumprimento de compromissos profissionais. A escolha do repertório foi habilmente feita pela sabedoria e experiência criativa de Robertinho do Recife e, quanto a mim, tive a felicidade de ver diversas canções de minha autoria gravadas, pela primeira vez, por Amelinha, com a competência e a maturidade afetuosa que tem hoje na voz e na presença pública. As previsíveis e inevitáveis discussões, que se desencadeiam em oportunidade dessas, provieram da diversidade de nossos interesses estéticos e, quem sabe, do alvoroço e da excitação de cantarmos pela primeira vez juntos, mas foram sabiamente mediadas e resolvidas pela prudência e amizades de Robertinho. Fizemos novas canções que deram mostras da continuidade de nossos processos criativos e que, juntas às regravações de canções que fizemos, longamente esperadas em nossas vozes, compuseram uma antologia fonograficamente notável e de imediata e prazerosa aceitação pelo público. Apreciar o presente trabalho de outro ponto de vista me pareceria aplicar o método de observação crítica impressionista a realizações do Cubismo e ou do Surrealismo.

OP - Fagner foi uma ausência sentida neste projeto Pessoal do Ceará 2002?

Ednardo - Gostaríamos que participasse. Primeiro porque, de forma natural, Fagner é identificado pelo público e mídia, como pertecente à nossa turma boa, inclusive havíamos idealizado projeto neste sentido de gravarmos juntos, o que continua no ar. Segundo porque em seus trabalhos iniciais existe link de confluências nos quais nos identificamos. Por outro lado ele faz questão de parecer que não é Pessoal do Ceará, no que há de mais pleno e luminoso na identificação. Li várias declarações públicas demonstrando esta falta de vontade dele, que ao meu ver é obtusa, pois em um livro sobre seu trabalho realizado por Evangê Costa sob sua autorização, o título ou um dos subtítulos é ''Fagner e o Pessoal do Ceará''. A propósito, algumas matérias em jornais noticiam que ele foi rejeitado pelos colegas e portanto excluído deste disco. De nossa parte, Ednardo, Amelinha e Belchior, não houve nenhum veto. É necessário entender que assuntos entre diferentes gravadoras que mantêm contratos de exclusividades com seus artistas, que podem existir motivos empresariais e comerciais que fogem à nossa alçada artística de decisões.

Belchior - Raimundo Fagner continua sendo, de todos nós, o que mais encarna e personifica a figura poderosa e esperta de quem sabe lidar com a mídia. Experimentado e excepcionalmente bem sucedido nos embates públicos da vida de artista contemporâneo, Raimundo Fagner confirma o talento de grande intérprete que revelou dezenas de canções e de artistas novos, especialmente do Ceará. A ausência de Raimundo Fagner é fundamentalmente sentida não apenas em simples projetos fonográficos e de show-business como esse, mas toda vez em que a música popular brasileira, especialmente aquela feita em nosso Estado, precisar exercer a criatividade e o talento e unir nossa poesia e música agreste à beleza e à expressividade diante do público. Continuo, modestamente, a invejar-lhe o sucesso e a combatividade.

Amelinha - Amo o Fagner, que é meu compadre, meu irmão. Já cantei várias vezes com ele, foi quem produziu meu primeiro disco, e cantarei com muita alegria quantas vezes forem necessárias. Além do quê, sou sua grande admiradora.

OP - Até que ponto vocês identificam influências da turma do Pessoal do Ceará nos trabalhos de compositores da nova geração no Brasil todo?

Ednardo - Assim como aprendemos com muitos mestres, temos consciência que também passamos estes ensinamentos e acrescentamos os nossos com características próprias, que podem ser encontrados em muitos segmentos da música brasileira e também no exterior. É só abrir os ouvidos e escutar.

Belchior - Feliz ou infelizmente, não consigo identificar muitas influências do assim chamado Pessoal do Ceará no trabalho dos demais compositores e intérpretes brasileiros da geração passada ou dessa. O que me impressionou sempre foi o altíssimo interesse que outros criadores e cantores manifestaram por nossas canções, a ponto de terem gravado centenas delas. Deploro apenas a ausência de uma fortuna crítica mais rica e mais condizente com a qualidade e quantidade do que fizemos e continuamos a fazer. Pessoalmente, me sinto bastante orgulhoso e confortado com o fato de não ter alunos nem seguidores, o que confirma certa individualidade irrepetível do trabalho que venho apresentando. Para não falar em que prefiro um toque de originalidade e invenção àquela inspiração que consiste apenas em inspirar os outros. Além do mais, não gosto de ser seguido: nem por minha mulher, nem pela polícia de costumes e, muito menos, como o Senhor Jesus, por amados discípulos...

OP - A turma do Pessoal do Ceará ainda tem um mito muito forte em nível local. E ainda rola aquele sentimento ''depois deles (vocês), não apareceu mais ninguém'', isto é, nenhum outro artista cearense conseguiu alcançar sucesso nacional. Por que você acha que isso acontece?

Ednardo - Ainda temos e vamos ter muito mais e sempre, o que dizem que é mito, traduzimos como respeito por parte do público, local, nacional e internacional, com merecido reconhecimento às nossas músicas que atravessam gerações com a mesma importância e valor artístico. Penso que apareceu muita gente boa com obra significativa, mas se ainda não há visibilidade desta nova geração musical, compete a eles próprios se organizarem e buscar espaços que nem sempre estão só em Fortaleza. Se querem alcançar nível nacional, parece que uma tomada de atitude neste sentido é fundamental. Não vou falar de regras do como fazer, porque não existem. Pensando de forma macro, artistas de humor cearense realizaram um grande boom em nível nacional. Estão aí Tom Cavalcante, Falcão e outros dignos representantes que demonstram que botando o pé na estrada, muita coisa pode acontecer. Lógico que sempre haverá o filtro natural, mas a turma dos músicos desta nova geração precisa não se acomodar a situações que os incomodam.

Belchior - As condições de criação e de realização pública do trabalho artístico por que passou nossa geração, tão diferentes das de hoje; o heroísmo, exigido de nós, que nos levou a deixar nossas escolas, nossos empregos e aventurar-nos pelo 'Sul Maravilha' em busca do sucesso; e a vitória final do espírito criador, de que sempre se orgulhará o assim chamado Pessoal do Ceará, devem, por certo, ter incentivado e mantido o mito em torno de tantos nomes, que à exceção, talvez, do meu, decidida e clamorosamente merecem. De qualquer forma, o talento continua e o ambiente artístico da cidade oferece, hoje, meios mais eficazes de formação de nome na música popular, até mesmo pelo aparecimento de público consumidor local interessado no respeito da qualidade artística superior. Mas não é verdade que nenhum outro artista cearense tenha conseguido sucesso nacional depois de nós. O grande Falcão, com seu talento, inteligência, irreverência, humor e originalidade tipicamente cearenses, mereceu o prestígio e o estrelato, provando, definitivamente, o contrário de nossa desesperança do que viria após o surgimento e a consolidação artística de Fagner, Ednardo, Belchior e Fausto Nilo, ou seja, do famigerado ''quarteto em si''.

OP - Para Ednardo: como único integrante do disco Pessoal do Ceará original a participar deste novo projeto, quais os paralelos que você encontra nestes dois projetos, 30 anos depois?

Ednardo - Belchior e Amelinha também fazem parte do Pessoal do Ceará. No primeiro disco, juntamente com Rodger Rogério e Teti, também cantamos músicas minhas, do Rodger, Fagner, Humberto Teixeira, José Evangelista (Dedé), Ricardo Bezerra, Augusto Pontes, Tânia Araújo, com a presença maravilhosa da Teti interpretando várias músicas. Neste novo, incluímos além das músicas de Belchior, das minhas, também Fagner, Vicente Lopes e Climério (que igualmente ao Brandão, é piauiense de nascimento e cearense de vivências e de coração). Com a presença luminosa de Amelinha e sua voz única, traçar paralelos entre os dois discos limita expectativas embora não seja nossa pretensão criá-las, mas tenho certeza que todos nós sonhamos com a possibilidade de ampliarmos nosso canto de forma plural, sem esquecer nossas individualidades artísticas, o que torna nossa proposta mais abrangente. E o público, na realidade o grande maestro, é quem melhor poderá exercer a função de julgar a validade de nossa arte.

OP - Para Belchior: você se sente cobrado pelos artistas cearenses por mais apoio na hora de alavancar suas carreiras nacionalmente, principalmente pelo fato do ser proprietário de uma gravadora, a Cameratti? Qual conselho você costuma dar para artistas que gostariam de conquistar reconhecimento nacional?

Belchior - O fato de ser sócio de uma gravadora não me trouxe nem me traz, de nenhum modo, o constrangimento da cobrança excessiva de apoio artístico à geração mais nova. Há companhias fonográficas, até mesmo no Ceará, muito maiores e mais importantes que a minha e, além disso, mais apropriadas para o lançamento dos novos da região. Os interessados, com a sabedoria e a experiência que lhes dá o famoso mercado, com o apoio e incentivo das novas Leis de Cultura e dos novos meios da modernidade, sabem disso muito bem. Aliás, não tenho ouvido nem sentido cobrança alguma, de nenhum dos bons e grandes artistas novos, cuja obstinação e talento respeito e admiro. É muito pouco o que eu poderia fazer por eles: na certa, menos do que conseguiriam incrementar por si mesmos. De minha parte, continuo na expectativa animada de que apareçam e cresçam; de que encontrem ou abram seu próprio caminho. Se pudesse dar-lhes um conselho seria o de não aceitarem conselhos de gente como eu. Não me sigam; eu não sou novela e também estou perdido. Façam como eu; inventem. Ou melhor, não façam como eu: inventem!

OP - Para Amelinha: o projeto explorou basicamente os repertórios autorais de Ednardo e Belchior, deixando seu próprio repertório de fora. Por que isto aconteceu?

Amelinha - Participei desse projeto para homenagear a minha terra através das músicas de Belchior e Ednardo, assim como poderei a qualquer momento estar com outros valores cearenses, sejam nacionalmente conhecidos ou não.


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