PANORÂMICA I

Ana Maria Bahiana

Jornal O GLOBO - 1984

Ó Todos os Direitos Reservados

ENCAIXE ENTRE O VIVIDO E A MEMÓRIA

Há um modo fácil e um modo menos fácil de se pensar sobre este disco de Ednardo. O fácil é dizer ah, bom, então, como o rock tá na moda, o Ednardo resolveu embarcar nessa pra vender, traindo suas raízes, etc. O menos fácil é lembrar que Ednardo fazia rock quando rock não estava na moda e que, anotador e observador feroz, sempre se recusou a fechar comportas em seu trabalho, preferindo acompanhar o choque dos contrastes, dos opostos. E que, last but not least, este não é nem de leve um disco de rock como mandaria o figurino do marketing.

Eclético por natureza, experimentador, Ednardo sempre foi o mais difícil de classificar dos cearenses, o mais autodemolidor de rótulos. E sua produção sempre caminhou, sinuosa, até chegar a uma obra acabada, de contornos definidos.

Nordestino de beira de praia, migrante sem amargura, Ednardo construiu um trabalho minucioso de investigação do universo dos maracatus, da lambada, do frevo, sintetizando-os às vezes com o que aprendia no rádio, enfatizando outras vezes suas diferenças.

Sob essa luz esclarece-se este novo disco. O cearense migrou pela segunda vez, mais de dez anos depois. O Sul que ele encontra é diferente, assim como a Fortaleza que ele abandonou tem outro significado para ele.

A fusão das formas autócnes e das importadas já foi tentada e resolvida no passado, dela se fez a carreira de todos os migrantes dos anos 70, cada um agora temperando a mistura em diluição. Ednardo intui isso, aqui: Ele observa agora os contrastes entre o vivido e a memória, as distorções dessa lembrança, e não funde mas justapõe formas opostas para divertir-se com a tensão que isso provoca.

Assim, ele atinge resultados brilhantes. "Rock Cordel", espécie de faixa-síntese de tudo, é um bom exemplo: sinuosa sobre/sob a barragem de guitarras dobradas e o ritmo obsessivo da bateria, um ponteio de viola costura os versos, e a gemedeira emprestada de um repentista (a memória) choca-se com os "pa-paum-ma-ma" do coro (o vivido). Um mambo "Rubi" e um instrumental "Ponto de Conexão" , retoma e traça uma evolução de tudo o que Ednardo fez no disco "Imã" de 1980: uma ampliação do ritmo do maracatu, um exercício sobre seu poder hipnótico, sua capacidade para suportar elementos alienígenas, como uma guitarra.

Mais uma vez, Ednardo está em movimento - isso é o que o disco pode indicar com máxima certeza. Em que direção, é assunto para o próximo capítulo de sua autobiográfica aventura.

Pesquisa Condensada - Aura Edições Musicais - 2000

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