REFERENCIAIS CEARENSES NA MÚSICA DE EDNARDO
Gilmar de Carvalho
Professor de Comunicação Social
da Universidade Federal do Ceará
Dramaturgo e Jornalista
Redator e Publicitário
Revista de Comunicação Social da UFC – 1983
Texto Condensado
Ó Todos os Direitos Reservados
1 INTRODUÇÃO
Somos um povo que canta, muitas vezes sem razões aparentes para a alegria. A canção estaria na palma dos coqueiros, no vento soprando os grão de areia das dunas, no mar quebrando nas praias paradisíacas, no cenário clichê que se contrapõe às secas, à aspereza do espinho, à terra crestada pelo sol.
O aboio, a incelença, o bendito, o repente, o coco, são manifestações de cantares, as várias vertentes a que se associam às propostas de nossos compositores, nossos cantores num sentido mais amplo e mais próprio, visto que são eles que elaboram e dão forma ao mote que é cantar.
Existiria um cantar cearense? Um canto com sotaque que refletisse e digerisse todas estas influências "folk", telúricas e expressasse um jeito peculiar de ver/sentir/falar do mundo?
O propósito de aprofundar esta questão nos levou a Ednardo, estuário urbano e cosmopolita de todas estas influências.
A escolha de Ednardo para esta tentativa de análise não parte de mero capricho ou da preferência pessoal que dispensa justificativas. Dentre todos os discursos dos compositores populares cearenses, o dele é o mais rico para uma dissecação com a finalidade de encontrar e pinçar traços do que seria um cantar cearense.
Um corte em seus dez anos de carreira vai nos mostrar um compositor em plena vitalidade e esforço criativo, capaz de guinadas, revisões, depurações.
A facilidade da escolha de Ednardo se choca com a dificuldade de se ajustar aos rótulos, às tentativas de classificação e compartimentação.
Ele tenta, ousa e pontilha seu trabalho com influências várias, do rock ao maracatu, do frevo à lambada, o que dá ainda maior riqueza e diversidade às suas propostas.
Isto vai tornar tudo o que for dito aqui sem o ranço da última e definitiva palavra. A releitura que vamos fazer de dez discos (1972/1982) vai nos mostrar um artista em progresso, num processo consciente de amadurecimento e consistência.
Ednardo, porque cria em cima do que seria raiz, sem folclorizar seu trabalho e porque pode e vai servir como ponto de partida para esta análise de nosso canto com sotaque, recriado, na mediada em que ganha outra dimensão e aceita as regras de um mercado competitivo e homogêneo e quer conquistar seu espaço neste mercado.
A lucidez e o compromisso de Ednardo com o ofício não impedem que ele aceite este filão de referências culturais e atue dentro do sistema como fato novo, em busca de seus públicos.
Este cantar cearense interessa mais na medida em que assume sua contemporaneidade na dualidade urbano/rural e digere influências e raízes. Isto Ednardo faz e tem feito, incontestavelmente. Ó
Autor: Gilmar de Carvalho. Pesquisa: Aura Edições Musicais-2000
2 UM COMPOSITOR CEARENSE/BRASILEIRO/UNIVERSAL
Ednardo, neste texto, astro na canção cearense, um operário, um artesão, recolocando a questão das "antenas da raça" de que falava Pound, aqui num contexto de emissão, sintonia, captação. Este texto pretende ser um roteiro básico de Ednardo, uma chave para a compreensão/decifração de sua proposta.
Ednardo extrapola a pessoa física, aqui ele é um compositor cearense/brasileiro/universal com toda uma carga de referências.
A questão básica é saber como uma geração com uma formação universitária convive com símbolos e valores urbanos/rurais e faz disso o material de trabalho para uma proposta contemporânea e massificada de música. De como ser o cantador eletrificado, e entrar nos mídia, se envolver ou não com o esquema multi e ter uma visão crítica numa indústria cultural centralizada. Ó
Autor: Gilmar de Carvalho. Pesquisa: Aura Edições Musicais-2000
3 A QUESTÃO DAS RAÍZES
O que parece problema arqueológico pode ganhar, de repente, uma nova abordagem. Por exemplo, deve-se entender aqui, como raízes, os pontos de partida para este movimento musical cearense.
Remotamente, ele é herdeiro direto das canções de Ramos Cotoco e seu lado retrato/crônica da vida da cidade. Num sentido mais próximo descende da boêmia de Lauro Maia, da insistência de Luís Assunção em cantar coisas nossas, ou da recusa de emigrar de Aleardo Freitas.
A essas fontes urbanas se alia toda uma ambiência rural, que é onde entra Humberto Teixeira, parceiro de Luiz Gonzaga. É bom não perder de vista que Fortaleza é o estuário das levas de retirantes, uma grande cidade sertaneja.
Mas é preciso mergulhar mais profundo para compreender o que teria levado ao mesmo tempo (o que dá o sentido de movimento), um número significativo de jovens, quase todos com formação universitária e de classe média, a fazer música.
O fato é marcante demais para ser atribuído ao acaso. E nada se faz sem ser reflexo ou projeção de uma situação geral, num contexto mais abrangente.
Neste caso específico, podemos falar, sem medo de errar, numa conseqüência, num fruto da atividade da instituição universitária, com toda a discussão que gerou, com a ampliação de espaços, com o aprofundamento de questões.
Esta geração teria ganho uma consciência do fazer cultural, se engajado ou não numa militância, mas inegavelmente, qualquer que tenha sido o caminho escolhido, ficou com esta angústia de se expressar.
O golpe de 64, mais incisivamente em 68, fechou os canais de manifestação desta gente. Os veículos reservavam pouco espaço a esta questão, menos que hoje. Os Beatles, a Jovem Guarda e os ruidosos festivais de música popular, consolidando o prestígio dos baianos, repercutiram na província abrindo, para a criação musical, novas e ricas possibilidades.
Este "pessoal" se preparou nos shows de bossa-nova, que era como se chamavam no meio estudantil, espetáculos de bolso, com poemas e músicas de protesto (Carcará, Opinião), violão, jeans, banquinho. Daí para os espetáculos do Cactus (Vamos brincar de samba, Quem tem bossa vai a Roma, Louvação) foi um passo apenas. Os arremedos de festivais contribuíram para desinibir, aquecer a turma. O primeiro foi o do DCE, em 1968, com muitas vaias, como convinha a uma promoção deste gênero. Chegou-se, ousadamente, a gravar um disco, o do Festival de Música Aqui do Canto (promoção Rádio Assunção, direção Aderbal Freire-Filho, 1970), ano seguinte, Belchior e Jorge Mello musicaram a peça de teatro Morro do Ouro de Eduardo Campos,(1971).
Mas foram os festivais Nordestinos da TV Tupi que premiou Rodger Rogério /Dedé, com "Bye Bye Baião" em 1969, premiou Ednardo com "Beiramar" em 1970. E o Festival Universitário, que premiou Belchior, "Hora do Almoço". Em Brasília, "Mucuripe" de Fagner/Belchior que levantava mais um prêmio.
O caminho estava preparado. O mercado estaria, pelo menos em tese, disposto a ouvi-los.
Novos espaços foram conquistados. Em termos de mídia impressa, os tablóides Folha Geral e Balaio (da Gazeta de Notícias), Traçado (Tribuna do Ceará) e Curtição - Guto Benevides (O Estado) deram espaço para entrevistas, depoimentos, divulgação do pessoal envolvido.
A televisão ainda não tinha se reduzido a simples repetidora. Os programas Show do Mercantil e Porque Hoje é Sábado, na TV Ceará colocaram os "musicais" em contato com os bastidores da mídia eletrônica.
Importante a participação de Augusto Pontes, como animador cultural, mais que isso, como quem teria traçado um ideário, dado consistência às propostas, respeitadas suas diversidades, o que lhe dá maior riqueza.
Impossível deixar de mencionar o entusiasmo de Gonzaga Vasconcelos, dando vez ao "pessoal" na produção de seu programa no Canal 2, numa verdadeira antecipação do que aconteceria depois.
Na área da badalação e boêmia, a presença de Cláudio Pereira, fuçando brechas, promovendo & acontecendo.
E como toda história que se preza tem que ter um bar, o nosso foi o Anísio, na Beira-Mar, situando-se na pré-história o Balão Vermelho, no térreo do Jalcy Avenida, na Duque de Caxias.
Estava acontecendo alguma coisa de novo na cidade. Havia alguma coisa no ar, um canto novo. A necessidade de emigrar.
O que a nova safra de compositores podia fazer, ela o fez. Soube heróica e impavidamente ocupar todas as brechas nos "mass media". Ninguém pode acusá-los de estrelismo, snobismo ou qualquer coisa deste tipo. Mas não dava para passar a vida inteira cantando em festinhas familiares, fazendo apresentações nos programas do Canal 2 ou inventando festivais todo o mês. Impôs-se, fortemente, a necessidade de falar para um público maior. A decisão não deve ter sido fácil. Estavam todos diante do impasse: resistir na terra (correndo o risco de não acontecer), ou alçar vôo.
As propostas eram consistentes demais para passarem despercebidas.
A necessidade da caixa de eco se fazia cada vez mais forte. Era impossível deter o curso das coisas, restringi-las aos limites provincianos.
A vocação cearense não é emigrar? Ednardo, Rodger e Teti engrossaram o caldo dos novos retirantes e gravaram na Continental um disco. Uma façanha.
O mercado já admitia uma investida que não ameaçasse romper a ditadura do eixo Rio/São Paulo. Os pernambucanos tinham aberto o caminho, segundo Nirez, em 1922 e 1927, que os baianos retomaram com talento e muito "lobby". Um trabalho que tinha a ver com Carmem Miranda, Caymmi, trajes típicos, Jorge Amado puxava o cordão dos orixás. E a Bahia mostrou, com intensa carga de estereótipos, tudo o que tinha.
Diante a designação "Pessoal do Ceará" a turma fez outra leitura do rótulo elitista e discriminatório, era o "pessoal" mesmo e depois tudo se esclarecia. E assim tivemos Ednardo, Rodger e Teti como uma espécie de os novos "três do Nordeste". Todo começo é sempre difícil. O disco já era uma grande conquista.
Ele dava seqüência a uma tradição musical que começou com Ramos Cotoco, em 1908, que teve oito músicas gravadas por Mário Pinheiro, na Casa Edson. Que prosseguiu com Adlih Sotam (Hilda Matos), interpretada por Chico Alves, passa pelas misses de Mozart Ribeiro com letras de Pierre Luz, continua com Aristóteles Ribeiro, ganha a conotação sertaneja com Humberto Teixeira e desemboca nos 4 Ases e Um Coringa e nos Vocalistas Tropicais, lançando nacionalmente Lauro Maia e Luiz Assunção.
A história dos cearenses que gravaram não pode omitir Gilberto Milfont, muito menos o Trio Nagô, de onde Evaldo Gouveia decolou para uma carreira solo.
Rendas de bilros na capa, Ednardo puxava o disco, o "pessoal" era Rodger e Teti. Ó
Autor: Gilmar de Carvalho. Pesquisa: Aura Edições Musicais-2000
4 A DIFÍCIL CHEGADA
A intensa mobilidade do cearense não impede que este arrancar as raízes e cair na estrada se faça com menos dor. Trata-se, antes de tudo, de uma rejeição que se sente. A terra que nos gerou não é capaz de nos suportar. Tem muito de mãe/filho neste relacionamento.
Não há alegria nesta partida, mas medo do desconhecido e o desafio de começar de novo.
Mas esta angústia não é levada às últimas conseqüências, por Ednardo, no disco de estréia. Talvez por conta da decisão não ser ainda definitiva. No fundo, o cordão umbilical não tinha sido cortado. O disco era um pouco pagar para ver. Esboçava-se o êxodo, era inevitável, mas como um tabu, não convinha tocar neste ponto. Existe sempre o sonho de resistir e ficar e ainda por cima irradiar um trabalho. Câmara Cascudo e Gilberto Freyre fizeram isso, mas não estão no centro de um sistema de indústria cultural desenvolvido pelos "mass media", o trabalho deles é de semente, ao nível das discussões acadêmicas, da contribuição ao pensar num sentido mais estrito. O trabalho do cantor tem que ter ressonância imediata. É da resposta que ele se realimenta.
Em "Ingazeiras", música dedicada à Aldemir Martins, significativamente, um cearense que emigrou, um traço deste conflito: "O sul, a sorte, a estrada me seduz."
O que fica patente do primeiro trabalho é o cantar Fortaleza: "Forte, praia, minha cidade". Se todos cantam (ou deveriam cantar) sua terra, Ednardo não faz por menos. Em "Terral" e "Beiramar" ele é o cantor apaixonado.
A cidade é bem mais que um pano de fundo para uma história de amor. Ela é personagem. Não é qualquer beira de mar de qualquer cidade do Brasil, mas uma Beira-Mar localizada, a de Fortaleza, "Entre luzes que lhe escondem/só sorrisos me respondem/que eu me perco de você". Uma Beira-Mar com seu footing provinciano, seus bares, sua estátua de Iracema onde "Só o meu grito nega aos quatro ventos/a verdade que eu não quero ver".
Em "Terral", seu canto é o vento que sopra da cidade levando saudades.
Mais descaradamente fortalezense, a proposta dosa o clichê turístico, o roteiro e a simbologia oficial com uma linguagem poética. A atopia é da essência do discurso amoroso. É imprevisto e tautológico, redundante na medida em que: eu te amo quer dizer eu te amo.
Ednardo assume suas raízes, sua identidade geográfica e cultural: "Eu venho das dunas brancas/da onde eu queria ficar/deitando os olhos cansados/ por onde a vida alcançar."
Dunas, sol, praia, areia, Fortaleza, Aldeota, aldeia se fundem num caleidoscópio. A oposição ao progresso se expressa no "Meu céu é pleno de paz/sem chaminés ou fumaça". O medo se define no verso "No peito enganos mil/na terra é pleno abril". É a soma de todas as contradições que eles iriam viver no instante seguinte.
A Aldeota é carregada da crítica ao espírito nouveau riche no antagonismo de "Eu sou a nata do lixo/eu sou do luxo da aldeia/sou do Ceará/ aldeia, Aldeota ..."
A Praia do Futuro é de onde piscam "O farol velho/e o novo/os olhos do mar/são os olhos do mar/o velho que apagado/o novo que espantado/o vento, a vida espalhou". E se confunde, ermo que era, com a liberdade de amar expressa em "Luzindo na madrugada/abraços, corpos suados/na praia falando amor".
O verbo aperrear é resgatado de um linguajar que cai em desuso: "Eu tenho a mão que aperreia/eu tenho o sol e areia/sou da América". Não é este o padrão nacional que as redes de tevê vão passar a impor. O sotaque resiste no "Estou batendo na porta/pra lhe aperrear".
Mas ele se assume cearense e amplia os limites deste canto numa dimensão continental, "Sul da América/South America". São estes os não-limites do seu cantar.
O ser cearense é um clímax para esta canção. Fecho e ponto de partida, síntese e essência. Esta informação prescindiria de ser tão escancarada, está na malemolência, na saudade, na certeza da necessidade de ir de vez.
A cidade recebe com indiferença quem gosta dela. É a desconfiança do índio? A insistência do sol?
A expressão, o sentido de "grupo" foi muito questionada. A posição era bem clara: "somos pessoas que desenvolvem um trabalho". O "pessoal" foi assimilado, mas com a consciência do risco. Fazia parte do ideário manter a individualidade, resguardados (e não negados) os traços em comum. Do contrário, pra que um grupo, se bastaria um? Ó
Autor: Gilmar de Carvalho. Pesquisa: Aura Edições Musicais-2000
5 APROXIMAÇÃO E DESEMBARQUE
O primeiro disco solo tem uma linha, obedece uma diretriz muito pessoal, não é a simples justaposição de faixas. Este seria o traço característico de "O Romance do Pavão Mysteriozo" (RCA, 1974). Também neste sentido é o primeiro disco. No outro, da Continental (1972) ele tinha quatro faixas das dez, que já davam uma direção que seu trabalho iria tomar e que tinham entre si mais pontos de contato e afinidades do que possam detectar ouvidos desatentos. O disco começa com a declaração das razões para emigrar. O parceiro Augusto Pontes dá o mote, são deles as palavras. "Carneiro" é também, significativamente, o signo de Ednardo, tendo Marte como planeta regente e a teimosia como principal traço de personalidade.
Deu o carneiro, e ele foi para o eixo Rio/São Paulo, de onde as coisas vinham e ainda vêm. "E eu mesmo vou buscar/e vou voltar em vídeo-tapes/e revistas supercoloridas/pra menina meio distraída/repetir a minha voz". Para ironicamente concluir com o " Deus salve todos nós/e Deus guarde todos vós".
Era uma antevisão e revisão crítica do papel do artista diante do sucesso e a decisão, por paradoxal que possa parecer, de entrar na briga.
Sem parceiros, ele embarca num "Avião de Papel" onde assume o discurso de um pai, e mãe, saudosos, mas confiantes: "Vai meu filho, vai/que Deus lhe dê boa sorte/fortuna e felicidade". Fortaleza se dilata e amplia no sufoco e contradições de uma cidade grande: "Não tem segredo, vai/que esta província/muito tem a ver, com a cidade/um pouco mais alargada, talvez/mas não tenha medo não."
A proteção estaria numa força mágica e ao mesmo tempo num objeto carregado de carga afetiva: "Eu lhe dou essa medalha assim/como seu avô me deu/mas a força maior está em você que nasceu."
A viagem se faria com o compromisso de manter as raízes, a ligação com a terra, no pedido de "Só não se esqueça de voltar pra ver/o que restou desse lugar/que o sol e a chuva/e os homens práticos vão modificar".
Neste ponto interfere um elemento que vai se acentuar, principalmente, no disco seguinte (Berro, 1976), a denúncia da iconoclastia cearense, um povo que faz questão de não ter memória, talvez por não ter nada de muito grandioso para relembrar. A cobrança se adocica no pedido de "Vir para abraçar o mar/e nós que vamos vivendo". E conclui no "E a gente sente saudades" que evidencia a dor da mudança, do crescimento feito pela superação de etapas de vida.
Em "Água Grande", também com letra de Augusto Pontes, o primeiro impacto da chegada: "Da primeira vez que eu vi São Paulo/da primeira vez que eu vim São Paulo/fiquei um tempão parado/esperando que o povo parasse."
A contemplação e impacto se registram "enquanto apreciava a pressa da cidade" e uma onda extraviada da Praia de Iracema "Veio toda em minha mente/me banhando da saudade/me afogando na multidão/eu vim São Paulo/se afogando na multidão/eu vi São Paulo".
A volta ao útero se reforça com a chegada das chuvas, a decisão de refazer o caminho de volta, cuja senha foi "Um aviso de chuva me chamou".
O artista palmilha o itinerário do retirante. Ele assume a mesma problemática, a mesma insegurança. Sem demagogia, ele é uma vítima do êxodo que incha os grandes centros urbanos. Seu status de artista não o diferencia, em essência.
É o mesmo processo que ele vivência, talvez de uma maneira mais visceral, por conta de toda a carga de consciência, senso crítico e lucidez que o empurra de volta: "Adeus São Paulo/tá chovendo pras bandas de lá/também tô com pressa/tá chovendo pras bandas de lá."
Examinado como disco, "O Romance do Pavão Mysteriozo" não é mais um sinal tímido de chegada, mas a afirmação de presença, de quem tomou pé da situação e já sabe o que falar. Ó
Autor: Gilmar de Carvalho. Pesquisa: Aura Edições Musicais-2000
6 O CORDEL COMO VERTENTE E RECRIAÇÃO
"O Romance do Pavão Mysteriozo" é proposta de cordel reinventado a partir de códigos urbanos. O ponto de partida é o clássico, o lado fantástico da literatura popular, num discurso que reforça a crônica da chegada, para voltar ao mesmo tempo.
Agora nosso interesse maior se concentra na recriação da faixa que dá título ao disco. O Pavão Mysteriozo é dos romances mais vendidos nas feiras nordestinas. É a interferência do "aeroplano pavão / ou cavalo do espaço / que imita o avião" do texto de cordel. Ou o "Pássaro formoso / tudo é mistério nesse teu voar / ah se eu corresse assim / tantos céus assim / muita história eu tinha pra contar" da canção de Ednardo.
O que seria um problema de impossibilidade amorosa, a libertação da condessa Creusa da torre de um castelo grego, ganha uma amplitude maior. Impotente, o homem sonha. Acossado, o artista transpõe o real e abre um leque de possibilidades - "Me guarda moleque / de eterno brincar / me poupa do vexame / de morrer tão moço / muita coisa ainda quero olhar"- tão rico e diversificado quanto a cauda dos mil sóis da pena do pavão na capa do disco.
Mas o Pavão é também metáfora para driblar o índex da repressão, em plena vigência do AI-5: "No escuro dessa noite / me ajuda a cantar / derrama essas faíscas / despeja esse trovão / desmancha isso tudo / que não é certo não,". "Um conde orgulhoso / mais soberbo do que Nero" de que fala o poeta popular, seria o mesmo, "Um conde raivoso / não tarda a chegar" da canção de Ednardo.
Só que a consciência deixa aberta a possibilidade de luta ao afirmar que "Nossa sorte nessa guerra / eles são muitos / mas não podem voar". O vôo não como fuga, mas como busca de transposição de barreiras, de saídas enquanto povo, tudo isso dito pelo poeta popular e reinventado por Ednardo que tomou o cordel como ponto de partida para esta canção, uma das vertentes de sua proposta musical.
Esta sabedoria ou "ciência" que impregna todo este trabalho está sintetizada no máximo de "Está Escrito": "Está escrito / no grande livro da sabedoria popular / que primeiro se deve viver / que é pra depois poetar". Em "De Repente" os pontos de contato são como a cantoria, onde o violão ovation faz contra ponto com a sanfona. O cordel é retomado no "Boi Mandingueiro", outro clássico da literatura popular. A parceria é com Brandão. Um boi que eles fazem vir do Maranhão, "Viajando de terceira / nos ombros do caminhão". O romance do Boi, como o do Pavão, se filia ao fantástico.
O mito da invulnerabilidade diante do inimigo está presente.
É a couraça que o povo resiste a tanto açoite. Mágico, misterioso também e messiânico, o Boi se funde com o político, numa adaptação do discurso político ao código da literatura popular. "Procurando com os olhos/o que não é fingimento/assustado de ver o medo/no olhar do companheiro/procurando entender do segredo/desse curral grande de gado/sem boiadeiro."
Múltiplo e ubíquo, uno, o Boi dorme no chão, no altar, na praça, na biblioteca, na escola. São do Mandingueiro o silêncio, a dança, a saudade, o chifre, a pinta. E ai daquele que "Não vê o mandingueiro chegar".
A procedência maranhense não inviabiliza a detectação de elementos cearenses neste trabalho porque se acha, juntamente com o Pavão, dentro de uma área de irradiação de influências que tem um de seus vértices no Carirí, mais precisamente em Juazeiro do Norte.
Mais que a utilização, o recurso a uma forma de expressão popular para a transmissão de uma mensagem, o cordel entra nesta proposta como uma estrutura de gesta nordestina, arraigada ao coletivo e que vem à tona com toda uma proposta de pontuação, secura, contundência. É este material que Ednardo recria com sua vivência urbana, consciência crítica e formação universitária, com seu talento múltiplo e facetado, difícil de ser rotulado, rebelde aos encaixes na engrenagem da máquina. Ó
Autor: Gilmar de Carvalho. Pesquisa: Aura Edições Musicais-2000
7 O REFERENCIAL HISTÓRICO: LIBERDADE DE OUSAR
Também temos nossos mártires e heróis, ainda precisamos deles. Um mergulho na história cearense, mesmo a contada pela historiografia oficial, mostra que já fomos mais guerreiros, mais militantes. A Revolução de 1817 e a Confederação do Equador foram páginas vigorosas escritas aqui. Clamamos por liberdade, ganhamos nosso primeiro jornal (Diário do Governo do Ceará, 1824), reafirmou-se um ideal que seria esmagado pela repressão.
Ednardo foi buscar neste episódio pontos de contato com a realidade que nos asfixiava. Mais que uma metáfora, numa fase de maior rigor e intolerância à livre manifestação do pensamento e ao exercício da atividade criadora, "Passeio Público" atualiza e recicla nossa memória.
A técnica é o do flagrante, a crônica urbana onde se apela ao "Amigo que desces a rua/não te assustes, não passes distante/procura entender, entender/ entender o segredo/desse peito sangrante".
O cantor "Hoje ao passar pelos lados/das brancas paredes/paredes do forte" cai num túnel do tempo. A atualidade dos gemidos de Dona Bárbara Pereira de Alencar, é a senha para o flash back: "Escuto ganidos de morte/vindos daquelas janelas/é Bárbara, tenho certeza/é Barbara, sei que é ela."
Mulher, guerreira, heroína, Iansã, Bárbara teria estado presa, embora o Barão de Studart e Gustavo Barroso contestem esta versão de Pedro Thèberge, numa cela subterrânea, "Dentro da fortaleza", de onde "Por seus filhos e irmãos/joga gemidos no ar".
A inscrição eterniza na pedra: "Aqui gemeu longos dias D.Bárbara de Alencar/Victima em 1817/Da tyrannia do Governador Sampaio".
Que sonhos tão loucos foi Bárbara sonhar?
Um sonho impossível que culminou em prisão, açoites, desterro. Outros tombaram "À sombra desse baobá", onde ele convida para que "Se deixe ficar por instantes" com "As brancas paredes do forte" refletindo toda uma luminosidade que é metáfora de "um novo dia", constante no filão da música popular brasileira.
Bárbara é também, para Ednardo, uma nova visão da figura e do papel da mulher, nesse tempo ainda reclusa às camarinhas, sufocada pelo machismo bem mais acentuado que agora. Bárbara foi a revolucionária na contestação à pieguice da figura materna exaltada numa subliteratura.
Neste Passeio Público, onde virão "Fantasmas errantes de sonhos eternos falar" de liberdade, Ednardo filmou muitas cenas de Cauim, (filme média metragem, 1978) que sintetiza em termos de imagem o que este trabalho fala em termos de música e palavra.
Na reconstituição, os mártires tombam enquanto o cão de um dos carrascos vem lamber os restos dos miolos do revolucionário Azevedo Bolão. O choque desta informação traz o espectador de volta a uma realidade tão ou mais violenta e opressora.
Quando Ednardo trabalha em cima de um episódio e de figuras da nossa História não é para exaltar os feitos numa visão ufanista ou personalista. Numa nova perspectiva, o Passeio seria o Ceará, com seus heróis, suas três avenidas (Caio Prado, Carapinima e Mororó), onde no início deste século se fazia uma nítida e espontânea separação de classes e os mártires seriam todo o povo ainda por se organizar.
E quem passa pelas paredes brancas do forte e ouve "Ganidos no ar", ou os "Gemidos de morte" deve ser capaz de saber que precisa ser escrita uma nova História, tão sincera e tão comovente quanto esta. Ó
Autor: Gilmar de Carvalho. Pesquisa: Aura Edições Musicais-2000
8 O NOVO PADEIRO
Existe muito maior relação entre a Padaria Espiritual e os novos compositores cearenses do que possa parecer a uma leitura mais apressada.
Afora o nascer aqui e a mostra da vitalidade e irreverência cearenses, pode-se também detectar a mesma asfixia e impasse de uma classe média querendo espaço para se fazer ouvir.
No século passado, Fortaleza começava a existir como cidade, a ganhar os equipamentos básicos (água, luz, gás), embora sufocada por uma economia sujeita às variações climáticas e com uma tradição libertária de que 25 de março de 1884 vem a ser o epílogo.
Neste contexto, se constituiu uma sociedade de rapazes de letras e artes, tendo por sede o número 105 da "Rua Formosa, moça bela a passear" para quebrar o ramerrão provinciano. O ódio ao burguês que ela arrotava era, segundo Tinhorão, a angústia diante da falta de público, isto no ano de 1892.
Boêmios, deram novo impulso à atividade intelectual, num saudável contraponto às manifestações da cultura oficial, e sem cair no bacharelismo que formava os quadros das oligarquias, já nesse tempo dominadoras. O objetivo era fornecer a todos o pão do espírito, numa antecipação pouco admitida das idéias modernistas de 1922 (Escola Modernista em São Paulo). Os novos compositores que servem "o fino biscoito" são padeiros por conta da contestação ao espírito dos "homens práticos", (Avião de Papel).
Lúcidos, assimilam a consciência crítica e criam um novo foco de difusão da criação artística.
Ednardo seria padeiro-mor, amassador, forneiro, olho da providência? "Um olho vivo, vivo a procurar/mais uma idéia pro padeiro amassar."
A evocação, longe de ser nostálgica, está em perfeita sintonia com os tempos em que foi sugerida: "Olha o padeiro entregando/de casa em casa entregando o pão/menos naquela, aquela, aquela, não/pois quem se arrisca a cair no alçapão."
A defesa que a Padaria fazia de uma linguagem nova, fora do empolamento e do tom discursivo e nacionalista, sem citação da fauna e flora estrangeira: "Você queria mesmo é ser um sanhaçu/fazendo fiu e voando pelo azul", torna-se com este novo canto, uma defesa da "província" enquanto centro irradiador de propostas culturais. A questão do sotaque, a descentralização, a possibilidade de fragmentar o discurso autoritário imposto nacionalmente seria a síntese desta "Nova padaria espiritual".
Em "Artigo 26", Ednardo retoma a questão dos inimigos da Padaria: "os alfaiates, o clero, a polícia". O Rock seria traduzido para o português "A ignorância é indigesta pro freguês", a história da galinha pedrês tem raízes na infância de todos nós. Ele vai mais além ao reinventar a quadrilha "Anavantu anavantu anarriê" e de mesclá-la aos passos do balé clássico na verdadeira assimilação antropofágica de nosso espírito moleque.
A esculhambação se generaliza com "igualité, fraternité e liberté" da Revolução Francesa diluído no contexto onde o político não eclipsa o bom humor, como na Padaria. O discurso fica mais irado "Nesta nova padaria espiritual", onde é outro o pão que se amassa "Pão na boca é o que te cura", o pão que falta à mesa. Assim sendo, "Você cuida do delito de comer / de comer, onde e quando cometer / coma tudo, tudo o que você puder / arrote, e coma você mesmo até / consuma tudo em suma / definitiva e completamente", uma palavra de ordem e um grito de guerra.
A esperança fica por conta de um novo momento que talvez surja "Na destruição somente / deste absurdo aniquilamento".
O mergulho na história literária cearense é uma contribuição séria dos novos compositores, Ednardo à frente, quando o Anísio faz as vezes do Mané Coco, o estatuto se cumpriu no item de juntar o cancioneiro e o pão se tornou canção. Ó
Autor: Gilmar de Carvalho. Pesquisa: Aura Edições Musicais-2000
9 OS PASTORIS DE EDNARDO
Os partidos azuis e encarnados de antigamente ainda batem seus pandeiros de latas de doces com guizos que eram tampinhas de guaraná achatadas e presas a pedaços de arame.
Mestras e contramestras cantavam nos patronatos, escolas paroquiais, casas de família, auditórios de rádios.
Borboletas pequeninas, demônios e a Diana, síntese dos dois partidos de um passado, que Ednardo recupera com forte carga conceitual.
O disco "O Azul e o Encarnado"(1977), com a evocação saudosista do texto do encarte, é uma proposta amadurecida de recriação. O folclore entra como ponto de partida do processo de criação e não como pastiche diluído entre arranjos modernos ou encaixado em estruturas pretensiosas. Prevaleceu a arte.
"O Azul e o Encarnado" retira do Pastoril a antítese. É o jogo dos contrários ampliado numa dimensão maior.
Ednardo contrapõe a sabedoria popular de "Está Escrito" a uma vivência sofisticada de "Somos uns Compositores Brasileiros". O ninar de "Cantiga do Bicho da Cerca" se contrapõe à falsa exaltação de juventude de "Como é Difícil não ter 18 Anos". O urbano de "Receita da Felicidade" é o outro lado do "Boi Mandingueiro" e sua conotação de cultura popular. O carnaval de "Maresia" se opõe à incelença de "Fio da Meada".
Onde "O Azul e o Encarnado" mais se aproxima do Pastoril, Auto de Natal Ibérico, é na faixa "Pastora do Tempo".
Outra vez estamos no terreno das metáforas e evocamos fragmentos que são transpostos para um outro contexto. O brilho ingênuo dos papéis laminados, da purpurina, e do falso cetim irradiado pelo "Cavaleiro do Medo/que tem do ouro a razão/pra ofuscar os meus olhos/e confundir minha emoção".
O antídoto contra o medo "A luz que me guia/é da estrela que irradia/a linda pastora do tempo/que guarda meu povo eterno/e livre o meu pensamento".
O bem e o mal, demônio versus pastora, ganham outras dimensões.
O antagonismo é entre o discurso autoritário e a perspectiva de liberdade. O incitamento à ação vem como epílogo: "Quem faz a história da vida/com ele rompeu as entranhas do chão/quem quer saber do que está escondido/procura no fundo dos olhos do povo/e dentro do seu coração".
Uma história que se tece e se conta com palavras/pombos-correio, sempre atrasadas em relação à ligeireza do pensamento/ação.
Em "Pastoril" do disco "Terra da Luz"(1982), começa por evocar um clima pastoral, da volta à natureza descrita no esboço do cenário e declaração de princípios: "Venho da maravilha/do mel da jandaíra/cheiro à flor de mangueira/venho da maraponga/pitanga, milonga, me língua de sol e de dengue". É uma dança sensual, um ritmo de sedução e conquista da mulher que "sacode a barra da saia/que eu te vejo por inteira".
Os ingredientes dos pastoris se fazem presentes: "Papel seda flor do mato e cetim/pra te cantar pastorinha/te trago dentro da minha/chuva de luz no dourada/fina areia prateada/na asa da borboleta."
O cantor se projeta "Meu anjo solto no espaço/espanta o mal e afasta/e deixa brilhar estrelas/em constelações de luz/em canções cheias de luz/no céu das nossas cabeças". É o pastoril reinventado pelo menino/homem/Ednardo apaixonado e deslumbrado pelo passado vivo no presente. Ó
Autor: Gilmar de Carvalho. Pesquisa: Aura Edições Musicais-2000
10 AS RAÍZES NEGRAS DO MARACATU
Tivemos os cortejos negros de que falam Eduardo Campos e Sérgio Pires, nas irmandades do Crato e Icó. Era a semente do Maracatu, quando reis e rainhas eram o centro de uma festa religiosa depois transposta para um contexto de carnaval.
Mas isso faz muito tempo e a trajetória do Maracatu sofreu uma longa solução de continuidade. Alegoricamente, o grande maracatu teria sido a festa da abolição, ironicamente, um movimento branco. Mas é apenas no final dos anos 30 que eles retornam às ruas. Dizem que vieram do Recife, trazidos por Raimundo Boca Mole, mas sua perfeita adequação ao nosso meio, leva a admitir que ele faz parte dos nossos arquétipos culturais.
Aqui, as nações africanas foram substituídas pelos naipes do baralho, segundo a professora D’Alva Stella, e incorporaram ao cortejo os índios, numa síntese da resistência dos dominados, nessa festa de liberação e inversão de papéis.
Como somos em grande parte caboclos, pintamos o rosto com fuligem de lamparina misturada com vaselina. "Rainha preta do Maracatu/nesse teu rosto de falso negrume". Mas não somos falsos. Ednardo está pintado assim na contracapa do disco Cauim.
A batida nostálgica e processional do maracatu está presente em várias composições dele, perpassa como um referencial de resistência, grande parte de seu trabalho. Tem maracatu no "Pavão Mysteriozo", em "Longarinas", em parte de "Terral", e mais acintosamente em "Cauim" e "Maracatu Estrela Brilhante".
Esta batida ficou entranhada em nossos ouvidos por conta de sua severidade. O cortejo deslumbrava a cidade que parava para ver o maracatu passar com suas mucamas, pajés, curumins, pálios, leques, tochas, calungas, balaios, rei e a rainha soberana.
Ednardo contribuiu para resgatar o maracatu do ocaso, sufocado pelo modelo carioca das escolas de samba, ditado pelas redes nacionais de tevê. Indo a frente e balizando.
Em "Cauim" a embriaguez por conta da bebida indígena fermentada. O cantor se faz o índio incorporado, no Ceará, ao cortejo. Não o estereotipado e europeu da literatura romântica, o "selvagem amável", mas "Um índio pronto para as flechas/dos arcos tesos de uma caçada incerta/monto no sopro do aracatí/tonto de espanto de amor e cauim/sou nau sem rumo/em teu ardor imerso".
A rainha (preta?) é "Uma princesa sertaneja e aflita/num gosto vivo de suor e sal". O índio/Ednardo seria "Cego, como um violeiro cego/que enxerga a vida sensitivamente/que tem na pele um olho mais agudo/que o meu punhal de ponta/em teu corpo quente".
A rainha assume nossas raízes negras e retoma, na representação desse papel por um homem, uma tradição que veio do teatro grego até tempos mais modernos. No clímax da canção, o amor subverte o matriarcado.
"Estrela Brilhante", antigo maracatu do carnaval de rua de Fortaleza, "Maracatu Estrela Brilhante/maracatu teu brilho errante/gamela da nossa mistura/tão linda tão mista e tão pura". Só que agora a flecha se crava "No céu brasileiro". O cortejo se amplia, e se torna marcial: "Garra maracá já, guerreiro/batuque ferro e ganzá".
O país seria um grande Quilombo, resistindo. E o maracatu passa dolente, bêbado, faiscante, num contraponto à folia explosiva, cara lavada, num universo onde negros e índios lutam para deixar de ser puro exotismo. E que no seu canto são a verdade mais ancestral, recriada e ampliada, trazida para o agora como um carnaval decretado fora do tempo e do lugar preestabelecido para a festa, "O louco maracatu" de "Ser e Estar". Ó
Autor: Gilmar de Carvalho. Pesquisa: Aura Edições Musicais-2000
11 A MULHER IRACEMA
Ednardo esculpe "No barro moreno do corpo" (Fênix) uma mulher que é Iracema. A índia mitológica e ancestral renasce através do canto. Toda uma atmosfera é recriada e ela ressurge, como um referencial mítico num contexto contemporâneo. Iracema é a mulher de que está impregnada a alma cearense. Iracema "É América", segundo Ednardo. Ou "E tudo do que é / é como ser o tempo / num requebro de baião / baião de dois", da canção
"Baião de Dois", disco Terra da Luz ( 1982).
O grande mérito de Alencar, ao escrever esta lenda indígena, foi trabalhar com estes signos tão arraigados na alma da gente. Daí a permanência do mito e as constantes leituras que dele se pode fazer.
A atualidade de Iracema é a do matriarcado, da relação da mulher com o dominador, da ruptura da virgindade e tem muito a ver com a volta à natureza das essências, do bucólico, do cheiro da terra "Flor do mato a tua boca".
Por isso Iracema sugere muitas leituras e tem sido objeto tanto de versões do latim, (cometida em Belém do Pará, 1950) à visão do poeta popular no folheto de cordel.
A Iracema de Ednardo é uma mulher que se compõe de fragmentos, dos cacos do espelho que a índia não recebeu nem reivindicou. Ela tem, em "Sonidos", "Cabelos de graúna, tentando o vôo, tremendo as asas", como a personagem do romance. "Os olhos dois grandes lagos, serenos, serenos" e segue em frente definindo a boca como "Papoula enfebrecida/molhada pelo sereno/vermelha papoula viva" e as mãos como "Uma carícia do vento, arrepio, arrepio", num corpo que é "Um susto moreno". Uma mulher "Pairando sobre mim/onde bebo toda a tua sede e me embriago". O mel, a graúna, a palmeira, a baunilha, o favo da jati estão recriados num contexto onde o texto de Alencar é a leitura de baixo, como nos palimpsestos, o que não invalida, antes enriquece e amplia a proposta de Ednardo.
Em "De Repente", a referência ao "Bem por trás daquela serra", a que ainda azula no horizonte. Em "Armadura", mais citações: "Mistura os frutinhos da mata/com o canto da juriti/e me dá um abraço acochado, morena". São as pitangas e ubaias, a flor caída do manacá, tranças, seios, jaçanã, flechas, lábios, trêmulos, redes e teias do poema indigenista. "E o que faz o meu passo ligeiro", num contraponto ao "pé grácil e nu a roçar folhagens". Em "Corações e Mentes", uma questão de pele "Molhada na alva cambraia da areia/branca da praia".
Ao nos dizer "Descendentes do galã lusitano, o Moreno", ("Avião de Papel") Ednardo assume por nós, edipianamente, o caráter e a condição de filhos de Iracema. O sabor "Num gosto de você que foi ficando" ("Beira-Mar"), a agressividade de "Povoar todo o deserto/com a flor do mandacaru", ("Asa do Invento") e no "No passo da ema/a volta da Jurema" ("Alfa Beta Ação"), existe "Uma moça bela a passear" e uma "Palmeira verde e uma lua a pratear" ("Artigo 26") de cenário onde se modela do barro de que fomos feitos esta mulher que perseguimos em sonhos e canções. Ó
Autor: Gilmar de Carvalho. Pesquisa: Aura Edições Musicais-2000
12 O FILHO DA TERRA DO SOL
Sol e luz são duas palavras que no Ceará se carregam de muitas e novas significações. O sol brilha o ano inteiro, castiga, cáustico. A luz é metáfora da liberdade dos escravos, a "terra da luz" do epíteto de José de Patrocínio.
Ednardo brinca com estes conceitos como um menino deliciado com um prisma. Ele decompõe a luz que sai de suas canções como um traço forte e característico da cearensidade de seu discurso.
"É ouro em pó que reluz", canta em "Ingazeiras". Em "Terral" ele declara ter "O sol e a areia". Seria uma síntese de Fortaleza, edificada sobre as dunas e também a loura desposada do sol, (no verso do boêmio Paula Ney).
Ao lado da chuva e dos homens práticos, o sol é acusado de modificar os hábitos da cidade na música "Avião de Papel".
No "Trem do Interior", onde seu coração viaja, "Um raio de sol clareou tua face/amanhecendo meus passos/estão sem norte", (parceria com Fausto Nilo). O cenário de "Alazão" (parceria com Brandão), é descrito como "Na poeira cinzenta, o sol, e o cavalo vai".
O sol como contingência, algo a ser domado, o sol que ofusca os olhos, na "Pastora do Tempo", onde a luz que me guia "É da estrela que irradia/a linda pastora do tempo", uma retomada adulta dos antigos pastoris da Rádio Iracema.
"Armadura" contra o mal e o medo teria sido dado pelo "Nosso suor com o sol do segredo".
"Clareou, clareou, clarear" é um canto de guerra "Se o fogo vejo espalhado/clareando o infinito espaço do pensamento". Mas "Meu Violão é um Cavalo" é profética, nela Ednardo se declara o "Cantador de um incêndio maior que o fogo do sol". Em "Duas Velas" (parceria Brandão) "Devorando a escuridão, a vida inteira como um só clarão".
"Cauim" tece a "Renda do sol" e denuncia a entrega "Nos meus braços/rijos de sangre luz". Na "Canção dos Vagalumes", "Cada qual fala com clareza, da luz que cada um encerra".
O amor "É um fogo dos teus olhos tição", segundo "Flora" (em parceria com Dominguinhos e Climério). E a figuração se estiliza no "Sol estampado na camisa/não aquece um peito aflito/gelado e entristecido", na canção "Torpor".
"No círio da luz dessa dor/violento amor há de voar", o registro de "Araguaia", o solitário canto dos companheiros mortos numa história que só agora começa a ser contada. Mas que é cantada por Ednardo, o que lhe valeu uma espera de mais de oito meses pela liberação do disco de 1979 (Ednardo, CBS), além da proibição da faixa ser executada publicamente.
"Pelo Coração do Brasil" evoca a luz que "Clareou o terreiro do dia" e vai mais além ao falar na "Lama, na luz do momento". "Desconcerta-te" vem "Luminando raios / que antes tarde do que nunca" ameaçam romper no "novo dia" messiânico de várias canções.
"Imã" tem "Uma flecha certeira/que sempre crava na luz/e sempre amanhece". Mas o apocalipse está na "A Bomba Z", que "Somos nós, crestando mais que mil sóis", na antecipação de uma ação popular. Em "Fornalha" ele vê o "Sol forjar em sua boca de fogo".
Mas é "Terra da Luz" o instante maior deste veio, ao assumir a letra "A" do nome de Ednardo o prisma e decompor o arco-íris numa síntese visual e gráfica da temática do disco. "O imenso brilho do sol/que explodiu nesse céu, fotografou você/sua sombra no ar a bailar" canta "Ser e Estar", que vai muito adiante ao falar no "Solar expresso solar" e propor "Uma aura de um ovo de luz/onde nasce outra terra".
Em "Asa do Invento", "O sol doura com sua luz" um mar de gente. Mas em "Corações e Mentes" que o sol ganha a conotação afetiva, com o "Beijo cravado em tua boca floriu/clareando o dia na luz do Brasil".
Este compromisso com o sol reveste de um halo de luminosidade atual o trabalho de Ednardo. Ele risca um rastro de luz, é seu caminho e trajetória, um foco direcionado, farol nos dias escuros e sombrios. Agora já se pode falar na alegria de um sol que não teme em despontar, tímido, cearense e real, o sol que ele canta. Ó
Autor: Gilmar de Carvalho. Pesquisa: Aura Edições Musicais-2000
13 O CANTO COMO INSTRUMENTO DE LUTA E AMOR
Um diferencial desta geração de novos compositores cearenses é a questão da consciência do ofício. O cantar, pra Ednardo, por exemplo, é vital. Sua trajetória descreve uma linha de coerência, sintonizado com seu tempo e com as coisas pelas quais luta.
A irresponsabilidade boêmia é um simpático referencial do passado, sufocada diante do marketing das gravadoras e do papel que estes novos compositores assumiram com seu canto.
Pinçar este compromisso em Ednardo é tarefa que começa com o primeiro disco e que vai num crescendo de metalinguagem, com a música discutindo a própria música. "Só o meu grito nega aos quatro ventos/a verdade que eu não quero ver", declara em "Beira-Mar", para concluir com um pungente "Vai calando a voz já rouca/sem mais nada pra dizer".
No disco de estréia (Pessoal do Ceará) tinha a força de uma declaração de princípios ou de fé. Em "Terral", ele se dizia "Batendo na porta pra lhe aperrear". Era um jeito cearense de dizer que estava chegando e que tinha alguma coisa dizer ou mostrar.
No "Pavão Mysteriozo" a retomada do mesmo tom: "Se eu corresse assim/ tantos céus assim/muita história eu tinha pra contar". A preocupação com o popular em "Varal", numa ampliação do canto popular numa dimensão ampla, "No varal a roupa ao vento/e no vento a voz da rua" (em parceria com Tânia Araújo).
Mas em "Ausência" o mergulho se faz mais profundo: "E eu mostrava a ti uma cantiga/uma cantiga antiga do lugar". Só que a canção era nova e nova também sua postura diante dos desafios e compromissos do artista numa fase de sufoco e de metáforas, o período Médici.
"Berro" radicaliza este discurso. Berrar se confunde com o cantar: "Do boi só se perde o berro/e é justamente o que eu vim apresentar". Ou a irônica visão do papel do artista ao se projetar "Sentados num banquinho alto/ microfone e violão/quilografados comportadamente/somos umas vacas". E que ele leva adiante ao tocar no eterno antagonismo entre "Os novos/os novos/corações aos pulos/as novas/as novas transações e sustos" e "as velhas coisas/as velhas coisas/pelancas ossos quem quer". Onde "As velhas câmeras não fotografam minha emoção" e a velha chave não é capaz de compreender a novidade e instigação de sua proposta.
Em "Abertura", a bicharada "toda do terreiro/já tem outra maneira de cantar", por que "Alguém colocou/um novo ingrediente na ração/e no pacato terreiro/formou-se enorme confusão".
Na antológica "Longarinas", a resistência de uma atitude aliada à impotência de mudar: "Só o meu mote não muda a moda não muda nada". No conceitual "O Azul e o Encarnado", o desafio: "Se arme de amor e coragem / que minh’arma eu nunca embainho",("Está Escrito"). Mais explicitado em "Pastora do Tempo" onde as palavras "São pombos-correio/mas estão sempre atrasadas/pois o seu vôo é lento/e o meu pensamento é ligeiro".
Em "Cauim" ele se diz "Cego como um violeiro cego / que enxerga a vida sensitivamente". É a retomada do tema da sabedoria popular e do repositório de verdades e experiências do cantador espontâneo, cujo violão seria "Um cavalo, bicho afoito livre e ligeiro" ("Meu Violão é um Cavalo). E na alegórica "Clareou", "As canções estão soltas no ar e sendo vento eu as quero cantar / por ofício, destino, ou paixão". E ao cantar "Canto canções maresia /roendo a cruel cadena/que ancora a nau da alegria".
"Cantar parece com não morrer", é a conclusão que chegou em "Enquanto Engoma a Calça", parceria com o piauiense Climério. Mas a agressividade do canto cortante está na "Faca sobre a mesa corta/como te cortam os meus versos", da letra de "Torpor".
"Pelo Coração do Brasil" é uma viagem interior e a declaração de que "Como cheguei primeiro/cantei a cantoria". "Aqui, ali, acolá", do disco "Imã" vai mais além ao afirmar que "Te penetrei com o meu canto". Se libera "Por ser irmã do meu canto/por não saber ser cativa", em "Ponta de Espinho". Incontida, "Minha canção explodindo em jorros de minha garganta", ("Reinverso"). "Subterrânea Canção Azul", teria "Sabor sangue e canção". E fala de "Inventando a luz da melodia/qu’esse samba canção irradia".
"Ser e Estar" radicaliza com o gesto de rasgar "A mordaça da voz". E o cuidado do aviso de "Alfa Beta Ação", um lembrete com gosto de ironia velada: "É bom que você não se torne/um marionete falante/de sexo, grafite e poesia/ política e som atuante".
O discurso sobre o cantar revela um Ednardo ansioso, agressivo, enraizado, ao nível urbano e bem informado de um violeiro que recusa a facilidade do estereótipo da cultura popular e busca um sentido e uma orientação para sua proposta de criação artística. Ó
Autor: Gilmar de Carvalho. Pesquisa: Aura Edições Musicais-2000
14 TODOS OS RITMOS, TODOS OS TONS
Uma análise do trabalho de Ednardo nestes dez anos não pode esbarrar em limites provincianos. Seu trabalho é de uma riqueza e diversificação que permite várias abordagens e leituras.
Ao pescar os caracteres de cearensidade, o objetivo foi mostrar que o trabalho em cima dos referenciais da cultura regional pode ser um caminho para a abrangência nacional.
Uma proposta caleidoscópica, multifacetada, onde o rock convive com a severidade da incelença de "Fio da Meada" (parceria com Brandão). O arranjo acentua com o toque do rosário desfiado do ritual beato o tom do lamento.
A morte que se lamenta em "Fio da Meada" é o alhear-se, a perda da lucidez, do tino e não a física, inevitável e implacável fim de todos nós, mortais.
"E quem perdeu o fio da meada/será que pode parar sem sentir nada?" E desfia metades: da sombra, do grito, da asa do anjo, meio-dia, meia aspirina, meio copo d’água e limão, meio-fio, meia sereia, meia lua, meio sermão. Quem perdeu o fio da meada teria ficado no meio, no vazio, na perda da identidade.
Impossível, através das palavras, nesta releitura, recriar a ambiência musical, mística e mórbida desta incelença. "Um olho, chifre e narina" são elementos jogados num contexto de medo.
"Reinverso" é a pregação do beato sertanejo lida ao som de efeitos, guitarra, cítara, trumpetes, baterias, tumbadoras. O tom seco, cortante, áspero se reveste de toda uma mística barroca nordestina. É a imprecação do cantor que se afirma aqui. Na cantilena, o desfile de imagens apocalípticas: o mar que não se abriu, a nuvem que não revelou o caminho, a pedra que não verteu água. Só que um apocalipse ao contrário do amante abandonado, rejeitado, espezinhado. Uma rejeição que se processa ao nível dos cinco sentidos : tato, olfato, audição, visão, paladar. E que explode na mortificação, na negação de escavar o chão, umedecer a terra com o suor e sangue. A amante pode ser a Terra, agora grávida das palavras, da ação, do olho, do "amor tão próximo do teu ódio". O "rebento desse tempo" poderia ser esta canção cáustica, verdadeira, descompromissada com a parada de sucessos.
O cantador está na interpretação, sem cair na caricatura. Mais presente quando se assume "Cantador dos açudes / dos rios e oceanos" a percorrer terra e ares, sem rumo determinado, "Qual feito nuvem cigana", ferrando com a palavra, violão e cantoria "A vida e seus desenganos", da canção "Meu Violão é um Cavalo". E que galope, irrompe, arranha, na "Ponta de Espinho" ou vem "De Repente", no repente, na fluência do canto, na magia das palavras, na postura arredia e desconfiada do caboclo/matuto.
Uma cearensidade que pode ser instrumental como em "Cariri", prescindindo das palavras e reinventando a região sul cearense através dos sons e efeitos, de sua musicalidade.
Aliás, a relação de Ednardo com seus parceiros não impediu que ele enveredasse pelas letras. Eles entraram em cena para enriquecer sua proposta, ampliá-la, não o inibindo de quase que prescindir deles nos seus discos mais recentes. Ó
Autor: Gilmar de Carvalho. Pesquisa: Aura Edições Musicais-2000
15 A TEIA E A TRAMA,A TESSITURA DA CANÇÃO
A mulher rendeira tece a teia de "Labirinto". Inevitável como símbolo em qualquer trabalho que se pretenda cearense.
O clichê que o turismo difundiu e que mostra a artesã, almofada entre as pernas, a brincar com os bilros no "ponto no ar", a verdadeira e mais complicada renda de se fazer.
As praias são sempre o cenário para este ofício que passa de mãe para a filha até que a automação rompa o ciclo artesanal de herança de cultura.
Ednardo começa "Labirinto" com a saudação típica "Olê mulher rendeira" e passa num corte para a maternidade espontânea de quem se sabe procriadora em "Olê filhos rendar". É uma cantada num código sem sofisticação, uma proposta de amor de quem se veste de renda para ter contato no corpo com o trabalho da tessitura, "Eu me visto pra alegrar".
Ednardo também tece uma verdadeira renda de palavras com mar/areia que se desdobram em siri, sereia, Maria, Ceará, identificando e dando procedência do trabalho.
A rede embala a canção. A velha "ini" indígena tecida por outras mãos ágeis e hábeis de artesão encontrou no Ceará sua pátria por excelência. Toda nossa preguiça e malemolência cabem nela. A rede modela nosso corpo no sono, no amor, na morte.
Ele é a rede acolhedora de "Longarinas": "Ê maninha, arma aquela rede branca que eu vou chegando agora". É a "Rede, rumo, romaria, pelas terras do sonhar" de "Rendados", (parceria com Tânia Araújo). É a "Noite na rede tua" deste "Labirinto". A rede onde ele se embala em "Fornalha".
No cantar apaixonado, a beleza da amada é "Um sol imaginado", o mesmo sol que "Te doura a pele". Uma renda iluminada, onde, paradoxalmente, seria o labirinto que "Faz a gente se encontrar". Um labirinto para se achar. Um labirinto que seria tecido finalmente pela linha do vento que faz aparecer todo um sentimento enrustido, encastelado e guarnecido de defesas numa casa encantada que é o amor. Este labirinto que Ednardo carrega de significação se projeta sobre todo seu trabalho como "A renda estendida no chão" de "Rendados". Ou quando "Tenta me envolver em sua teia" ele consegue projetar filigranas, ressaltar sutilezas e capturar, nos pegar pelo ouvido.
Tecemos com ele essa teia, a partir dos bilros e da "Ponta de Espinho" que é o suporte para o ponto na trama. Em "Cauim", a renda diáfana é "Pano feito pelos fios d’água/desse véu de noiva/bica do Ipú". Há um apelo no "Tece e trança tua teia/meu irmão" de "Desconcerta-te". Mas a verdadeira teia que Ednardo tece é a das palavras e sons, compondo um novo cantar com o calor da emoção verdadeira e a paciência e o cuidado de um artesão.
Nesta renda entram a aspiração popular, a interferência na realidade, a necessidade do sonho e a crônica de nosso tempo. Nesta trama cabem os pregões populares: "Doce gelado, sapoti, coco babão / doce gelado, ô doce" de "Aqui, ali, e acolá"; o bumbo e o fole de "Como era gostoso meu inglês"; a comparação dos corpos com velas (de jangadas?) e a mulher rendeira estereotipada na ruptura com a linearidade da informação tradicional, a um passo do kitsch e seu aproveitamento noutro contexto, evidentemente, mais rico de sugestões e deduções. Ó
Autor: Gilmar de Carvalho. Pesquisa: Aura Edições Musicais-2000
16 DEZ ANOS DE ESTRADA
Ainda na chegada, a curtição dos intelectuais paulistas, ávidos pela novidade e vitalidade da nova invasão. Depois, um certo fastio de quem apadrinha e abandona, só que os compositores cearenses, já tinham consistência para continuar voando, com os pés fincados no chão.
A constante mudança de gravadoras (comum à todos eles), pode refletir o turn over, a famosa rotatividade própria de quem agrada, um frenesi necessário para animar o mercado. Mas pode significar também uma inadequação, uma falta de apoio na hora da divulgação, num esquema onde funciona o que for programado para tocar no rádio, na maioria das vezes por conta da mal disfarçada compra de espaço.
O espaço que Ednardo ocupa nos mídia, em função da importância e qualidade de seu trabalho no campo da comunicação musical, (no período em que este referencial foi realizado), é pouco e tem raízes mais profundas na questão do colonialismo interno.
A abordagem (de uma parte) dos mídia, contrária à disseminação de focos de criação e produção cultural fora do eixo Rio-São Paulo, produz rótulos preconceituosos de: regionalista, rebeldia ao fácil, politização do canto, quando a verdadeira posição de Ednardo, neste contexto e movimento musical, atua lúcida, e sua proposta também é, uma reflexão sobre a questão das raízes em relação à industria cultural, quando o sotaque pode ser amplificado sem ranços ou bairrismos e quando este referencial cultural se dissocia de posições tradicionais ou folclóricas.
"Quais quixotes, quais chicotes a estalar nossos momentos", ("Pelo Coração do Brasil"), ampliando e modificando as regras do jogo, Ednardo se posiciona no centro deste debate sobre música, cultura, meios, massa, mensagens.
Este é um trabalho para ser lido tendo como background os dez primeiros discos de Ednardo, entre 1972 a 1982. Ó
Autor: Gilmar de Carvalho. Pesquisa: Aura Edições Musicais-2000