FUSÃO DE RITMOS E SONS

 

Jornal O POVO – Fortaleza/Ceará-1983
Matéria Condensada

ANTÔNIO CARLOS MIGUEL
Ednardo abriu espaço na música brasileira com sua alquimia sonora vital e inusitada. Jogando com uma bagagem ao mesmo tempo regional e cosmopolita, ele irrompeu no início dos anos 70 para ampliar o nosso mapa musical.
Em 72, no eixo Rio/SP ele participa do IV FIC (Festival Internacional da Canção), com a música Bip Bip (Eletricor), parceria com Belchior.

Mas é com o disco "Meu Corpo Minha Embalagem Todo Gasto Na Viagem"(Pessoal do Ceará), em 73, que Ednardo abre seus caminhos, entre as canções que marcam - "Terral", "Ingazeiras", "Beiramar".
No disco individual "O Romance do Pavão Mysteriozo", em 74, ele traça um perfil do artista nordestino que começava a chegar no sul - "Pavão Mysteriozo", "Carneiro".
Com o disco "Berro", em 76 as incisivas "Padaria Espiritual", "Artigo 26", entre outros toques, batem pro pessoal do sul, sobre o movimento cultural que incendiou Fortaleza no final do século passado, - a Padaria Espiritual.
No disco "O Azul e o Encarnado", em 77, está o conceitual da tradição do Pastoril, uma festa popular que na sua dialética do bem e do mal tem contatos até com a filosofia chinesa do Tao, com o Ying/Yang.
Em 78, ele gravou o inspirado disco "Cauim", que além das canções "C’lareou", "Duas Velas", "É Cara de Pau", e "Cauim", tem o trabalho dos violões de Ednardo, Pepeu Gomes e Cirino.

O espírito irrequieto de Ednardo, o leva no ano seguinte a produzir outro disco decisivo, em 79 é gravado entre outras, as canções: "A Manga Rosa", "Numa Boa", "Torpor", "Araguaia" e o sucesso "Enquanto Engoma a Calça" - "Arrepare não, mas enquanto engoma a calça eu vou lhe contar, uma história bem curtinha, fácil de cantar, porque cantar, parece com não morrer, é igual a não se esquecer, que a vida é que tem razão".

Nos anos de 80 a 83, residindo em Fortaleza, além do estimulante e vanguardista disco "Imã",(80), ele produz e participa do disco duplo "Massafeira", (80), projeto que reúne cerca de 250 artistas do nordeste e de outras regiões do país, incluindo várias gerações com propostas artísticas diferenciadas, nas áreas de música, cinema, literatura, poesia, artes plásticas, teatro e outras formas de manifestações. E em 82, grava o disco "Terra da Luz", que mostra a influência benéfica que a terra natal trouxe, sem no entanto desligar a sua ampla e aguda visão do mundo exterior.

Agora em 83, quando chega ao décimo ano de sua carreira discográfica, a comprovação de que neste trajeto ele foi absolutamente fiel ao seu projeto de arte.
O artista nunca gostou de ser enquadrado num grupo ou movimento sectário, mas uma constatação é inevitável no seu universalismo, Ednardo foi quem melhor traduziu na MPB contemporânea, o Ceará, sem levantar bandeiras ou apelar para ufanismos.

Sua música traz cheiro da terra e da brisa do mar, e é a partir daí que se estabelecem as pontes com o mundo. Ele chega a qualquer espaço, qualquer cabeça. É claro que para isso contribuiu toda uma formação eclética e uma ampla vivência. Além dos shows por todo o Brasil, Ednardo viveu os anos 70 entre o Rio e São Paulo.

Ednardo comprova em seu décimo disco uma trajetória iluminada que abriu muitas rotas para nossa música popular. Este seu novo trabalho sintetiza muito desse caminho, mas também mostra o cantor e compositor num momento de transformações. Aliás, sem ser incoerente, ele sempre foi um mutante.
O novo "para espantar o tédio", ou o "RockCordel", numa fusão de John Lennon e Cego Aderaldo, rocks dos chamados primeiro e terceiro mundos, sem prioridades e classificações. "Um rockcordel pra acordar todo o prédio".
Como um estado de espírito universal, rebeldia, não acomodação. Porque acomodado nunca foi, nem quis faturar em cima de sucesso fácil ou do tititi em torno de um grupo estanque.
Daí a diversidade do atual disco, que traz uma mistura salutar: maracatu, reggae, samba, lambada, rock, frevo, balada e xote.
Sem fronteiras rígidas ou hibridismo. Mas, é deste aparente caos que surge uma identificação própria e como ele próprio sugere - "a captação desta nova linguagem do Brasil". - Linguagem viva, atuante e pulsante, que não se restringe a fórmulas e aos pacotes.

Escutem a contagiante "Rubi", uma lambada - ritmo do Caribe que também é muito difundido no norte e nordeste do Brasil - que é uma "Coisa boa de se cantar"- "e eu trouxe a todo momento essa pedra rubra ardendo, pra poder nos descobrir, te achar é seguir em frente, e verás que a luz aumenta, cada vez que toca em ti, o tom de um canto cristal, além do bem e do mal, a gema rara rubi".

"Tudo" - um dos momentos mais bonitos do disco por sua estrutura baladística, etérea, viajante, define este estado: "...Vozes d’Anunciação, em quatro cantos cantarão, no soar de mil clarins, tudo, muito, claro, sim, pulsa o ritmo que unirá, a força elementar, tudo o que é, tudo o que foi, tudo haverá, ... Romance Gitano, Trilha de Tuareg, longo caminho... Nostradamus nós estamos em um nove oito quatro, cabe a todos se fazer, o sol brilha, brilha, brilhar". - Da citação de Garcia Lorca à consciência de que nós mesmos é que faremos o caminho, Ednardo acredita no ser humano.

Também comprovam isso "Arraial", "Café com Leite" - com uma fusão saborosa dos ritmos nordestinos pra pular, xotefrevobaião, a sanfona do Zé Américo e a guitarra do Manassés - e "Nova Raça" - "...Toda a vida é um relâmpago que brilha, moto contínuo pra se cantar, numa canção de rádio, ou num veloz metrô, que navega na voz de um computador, soletrando os dígitos da palavra amor, ou no tan tan tan tan do tambor..."

Sem saudosismo, o cantor e compositor é, e aponta a nova raça que está nascendo neste admirável, imprevisível mundo tecnológico, ao mesmo tempo que satiriza, num sambafoxé este país do futebol e carnaval: "Mamãe não quero ser um banqueiro... Papai não quero ser um soldado... Papai Mamãe a sócio elite, juntando para o amanhã, mas se explodir essa bomba, acaba hoje um amanhã tão rosê".
Num mundo que tentam pintar apenas entre o trágico cinza e o deslumbrado cor de rosa, Ednardo traz todas as cores e muito mais, além do arco íris, mais do que a íris consegue captar.

Pesquisa - Aura Edições Musicais - 2000
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