ENTRE O AZUL E O ENCARNADO

A MADURA POESIA DE EDNARDO

Nelson Motta

Jornal O GLOBO - 1977

Ó Todos os Direitos Reservados

Ednardo elaborou seu disco e seu show a partir de um jogo que brotou de sua imaginação e visão poética de vida: o objetivo do jogo é, saindo dos pés chegar à cabeça do homem.

São três as opções e livres as regras: estômago, coração e razão. São estas as áreas onde se desenvolve o jogo poético, musical e vital de Ednardo: a que usa os pés, as pernas e o ventre, como nas músicas "Está Escrito", "Pastora do Tempo", e "Cantiga do Bicho da Cerca".

"... Está escrito no grande livro da sabedoria popular / que primeiro se deve viver, que é pra depois poetar".

Outra área do jogo é a que usa o fator Transformação, elementos que geram mutabilidade e se localizam na cintura, como em "Boi Mandigueiro" e "Somos uns Compositores Brasileiros...".

"... Aprendemos com a classe média / que a vida vira um tédio, sem a televisão, aprendemos com a alta classe / a gostar do vinho e a comer faisão / somos uns compositores brasileiros, like you, nossa voz / mas quem me ensinou essa tristeza / sangra coração...".

Vital e sanguínea é outra área do jogo de Ednardo, e que está ligada ao Emocional:

"... Quando você pisca seus olhos / e tenta me envolver em sua teia / quando você me mostra os seus fatos / e faz de minha vontade o papel / onde escreve os seus recados / Quando você me faz escutar / sua voz acima do meu próprio medo / é que eu percebo como é perto / do ódio o amor que eu lhe tenho...".

Uma das músicas mais fortes do disco-show é uma dramática e rockandrolleira "Como é Difícil não ter 18 Anos", na mesma área de jogo das forças destrutivas que existem no mesmo cordão, como no Azul e Encarnado do pastoril de sua memória. Braços e mãos na mesma área:

"... Como é difícil não ter 18 anos / e percorrer a via sacra do meu corpo / sem essa inocência que me guarda / e acreditar que ainda sonho os meus sonhos / e pensar que mando em minha vida / e achar que mesmo assim o céu é azul / Como é difícil não ter 18 anos / e guardar a semente de esperança / nas canções que eu aprendi...".

À mesma área pertence o furioso e cambalachiano tango-miúra "Idéias", outro excelente momento de Ednardo: "...Já não aguento de tanto supapo e papo e papo / tem sempre alguém vendendo o mesmo peixe / dizendo que é fresco / Será que alguém já desconfiou / como eu desconfio / que sempre se repete, se repete, se repete / mas pouca gente cria...".

Além de ter produzido um dos mais sólidos e alimentícios trabalhos em disco desse ano, Ednardo construiu uma bela e contundente (auto) crítica em "Somos uns Compositores Brasileiros", através de uma poética com (intencionais) momentos dylanianos e muito pessoal. Lúcida e lírica. Faca e ferida.

No mesmo disco, há ainda momentos de luminosa música poética. Ou poética musical. Acróstico sonoro. Morrendo para poder renascer: "Fenix"

"Fluindo o sonho, a sina e o som brotando da minha boca

Esculpindo no barro moreno do corpo, o ferro brutal da vida

Negando o frágil sopro do corpo com o duro cinzel do espírito

Inventando o necessário movimento, movimento necessário invertendo

pra não estar morto

Xaxando, sambando, frevando, ou sem saber dançar direito

Renascer das cinzas".

Ednardo sabe do jogo. Ele mesmo inventou um, com os permanentes jogos da vida e do mundo. E joga. Bem. E não rouba no jogo.

Impecável, o concerto de Ednardo no Museu de Arte Moderna.

O cearense mostrou um trabalho bonito, maduro, equilibrado, sem que represente qualquer acomodação ou aburguesamento criativo, esse equilíbrio - que ele tão bem expressa:

"...A Borboleta voava entre as flores-pastorinhas e o meu coração, o meu corpo e o meu pensamento, por entre os sustos, os pandeiros e fitas e cânticos, por entre as belas pastoras do Azul e do Encarnado, por entre a espada do Anjo e o fogo do Diabo, entre os dois cordões, entre as pessoas que só queriam, no fim da jornada, encontrar a Felicidade.

Mas o segredo estava na jornada, no jogo a se descobrir durante a caminhada. No ver a harmonia das cores mesmo contrárias ( dizem) entre si. No saber identificar os elementos que, de resto, continuam até hoje dançando e cantando neste Pastoril Geral...".

Além de um repertório amplo, inquieto e com momentos de intensa luz, Ednardo e sua banda proporcionaram um excelente concerto ao público que lotou o MAM, precisos, seguros, diretos, enérgicos.

Pesquisa Condensada - Aura Edições Musicais - 2000

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